OFF ouvirá o outro lado: ‘Mas já? Por que eu?’
Numa roda de jornalistas, era fácil reconhecer Otavio Frias Filho, o OFF. Era o que falava mal do jornalismo. Antes de sua morte, tive a oportunidade de indagar: Por que essa visão tão corrosiva sobre o ofício? Ele devolveu a interrogação: Por que você escolheu ser jornalista? É na imprensa que a história vai buscar a maior parte dos seus dados, respondi, querendo impressionar. E Otavio: "Por isso a história está cada vez mais confusa e, por vezes, mentirosa." Em quase três décadas de convívio profissional, a qualidade que mais admirei em Otavio foi sua devoção à autocrítica. Seu grande acerto foi a obsessão com que perseguia o reconhecimento dos erros.
Almoçávamos no Jardim de Napoli, uma cantina italiana de Higienópolis. A convite dele, eu acabara de trocar a chefia da Sucursal de Brasília pela Secretaria de Redação da Folha, em São Paulo. Fui à mesa preparado para expor projetos. Num bloco de anotações, registrava as ponderações do meu interlocutor. A certa altura, Otavio encurtou a prosa: "Faça o que sabe fazer". Queria mastigar outro assunto: sua angústia com o nanismo da seção 'Erramos'. Acreditava que o jornal cometia mais erros do que era capaz de admitir.
Tentei contemporizar: Não acha que há mais acertos do que erros? E ele, implacável: "Num jornal, o acerto fica obsoleto em 24 horas. Morre a cada manhã. Só o erro tem vida eterna. O atropelo dos fatos, a pressa do fechamento… Tudo numa redação conspira a favor do erro. O jornal é um convite perene ao erro." Otavio foi prisioneiro de um paradoxo. Perfeccionista, considerava a perfeição inatingível. Ele disse naquele almoço que tanto me marcou: "A imprensa é o resultado da sociedade em que está inserida. Poderia imitar-lhe os acertos, mas acaba mimetizando-lhe os equívocos."
O excesso de azedume talvez tenha privado Otavio de notar algo sobre sua obra. É verdade que a imprensa, como todo o resto, é o reflexo da sociedade. Mas às vezes, por força das práticas que um indivíduo consegue inspirar num pequeno grupo, elas se elevam acima do meio. E fazem o meio progredir. Preocupado em fazer a autópsia dos erros que julgava perenes, Otavio feneceu privando-se de uma autocrítica a favor.
No período de nossa convivência, construímos naturalmente um acordo tácito: nunca deixei de admitir os muitos erros que cometi. E Otavio jamais permitiu que fosse cometido contra os repórteres que tive o privilégio de chefiar o equívoco de interromper a publicação de uma reportagem bem apurada —mesmo nas ocasiões em que notícia contrariava interesses poderosos, por vezes afetando personagens próximos.
A essa altura, Otavio deve estar irritado com seu maior erro: não percebeu que seus acertos sobreviveram ao nascer do Sol, ultrapassando as fronteiras do obsoleto. Elevou a qualidade do jornalismo a patamares inéditos. Por sorte, Otavio tinha uma segunda neurose funcional. Além da autópsia dos equívocos, tinha um apego demoníaco pelo "outro lado". Poucas coisas o deixavam mais aborrecido do que uma notícia acusatória que não contemplasse a audição do acusado.
Morto aos 61, Otavio decerto acusará alguém de ter transformado sua vida numa reportagem incompleta. A morte mata. É sua função. Mas ela também comete seus equívocos. Especialista na identificação de erros, Otavio deve procurar a morte para ouvir o outro lado: "Mas já? Por que eu? Não dava para esperar um pouco?"
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