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Josias de Souza

Bolsonaro precisa parar de industrializar a raiva

Josias de Souza

29/10/2018 03h31

Há males que vêm para pior. Durante a campanha, Jair Bolsonaro botou raiva demais na sua retórica. Eleito, poderia ter oferecido conciliação. Mas tomou gosto pela cólera. Consolidado o seu triunfo, o capitão correu para a trincheira das redes sociais, seu habitat natural. "Não poderíamos mais continuar flertando com o socialismo, com o comunismo, com o populismo e com o extremismo da esquerda", declarou, ecoando o discurso que fizera uma semana antes —aquele em que dissera que os "marginais vermelhos", com uma "faxina", seriam "banidos" do país.

Bolsonaro ainda não se deu conta. Mas a satanização dos adversários perdeu a importância com a abertura das urnas. A corrupção é endêmica, o Estado foi à breca, a economia está sedada e há 12,7 milhões de brasileiros sem emprego. Admita-se que, diante de tantos flagelos, o partido da estrela vermelha e o sistema político tornaram-se alvos fáceis. Mas Michel Temer, a herança do petismo que apodrece no Planalto, vai embora em janeiro. E nem por isso haverá um surto de probidade. O déficit público não sumirá. O PIB não bombará. E os empregos não cairão do céu.

Bolsonaro planeja viajar para Brasília nesta terça-feira. Precisa nomear até 50 prepostos para cuidar da transição de governo. Chegou a hora de saciar as expectativas que despertou. Sob pena de produzir uma onda de decepção capaz de corroer rapidamente a legitimidade obtida nas urnas.

Os eleitores de Bolsonato dividem-se em dois grupos. Num, estão os brasileiros que acreditaram num mundo feito de soluções fáceis. Noutro, os que votaram contra os defeitos do sistema, não a favor das qualidades do capitão. Quando o primeiro grupo perceber que não existem soluções fáceis e o segundo grupo notar que a desqualificação do eleito o aproxima daquilo que o sistema tem de pior, Bolsonaro estará em apuros.

Nessa hora, o "grande exército" de apoiadores do presidente eleito começará a flertar com a ideia da deserção, juntando-se aos "socialistas" e "comunistas" que Bolsonaro enxerga nas esquinas, em cima das árvores e nas redações "da grande mídia". Ou Jair esquece que há um sobrenome "Messias" anotado em sua certidão de nascimento antes do Bolsonaro ou vai acabar acreditando que é mesmo o salvador da pátria.

Sob refletores, renovará a promessa de expulsar os vendilhões do templo. Longe dos holofotes, negociará com os pecadores a aprovação de suas reformas no Congresso. Bolsonaro já iniciou um movimento de aproximação com as bancadas de partidos como o DEM de Rodrigo Maia e o PSD de Gilberto Kassab. Logo, logo terá raiva de si mesmo, tornando-se vítima de sua própria indústria.

Sobre o autor

Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.

Sobre o blog

A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.