Chacina em escola é sinal de crise de civilidade
Nem todos os brasileiros se deram conta. Mas uma das crises em que o Brasil está metido é uma crise de civilidade. A chacina na escola de Suzano (SP) é sintoma dessa crise. Isso era coisa de filme enlatado, era coisa de maluco norte-americano. E vai se incorporando à nossa realidade como mais uma anormalidade rotineira. Aos pouquinhos, a violência invade as últimas reservas ambientais urbanas: escolas, creches, igrejas… O sangue já jorrou até em cinema de shopping center.
Um frêmito de horror percorre o noticiário sempre que o fenômeno dá as caras. Passado o susto, as pessoas viram a página. Para trás. E esperam anestesiadas pelo surgimento do próximo atirador ensandecido. Segundo a contabilidade provisória, morreram dez na escola de Suzano. Em dezembro de 2018, um atirador matou quatro fiéis após a missa, na Catedral Metropolitana de Campinas (SP). Suicidou-se em seguida.
No ano anterior, em outubro de 2017, oito crianças e uma professora morreram depois que um segurança tocou fogo numa creche na cidade de Janaúba (MG). Registraram-se espasmos do mesmo surto aqui e ali —em Goiás, no Paraná… Eram reincidências menores da matança de abril de 2011, quando um homem entrou numa escola de Realengo (RJ) para passar 11 estudantes nas armas.
A banalização da violência é coisa muito velha no Brasil. Mas os mortos não tinham rosto. Escondiam-se atrás de estatísticas que a rotina confinava nos rodapés das páginas de jornal. Só de raro em raro a imagem da penúltima chacina na periferia das grandes cidades pegava o país desprevenido no Jornal Nacional, entre uma novela e outra. De cadáver em cadáver, construímos uma ruína típica de guerra.
Nos últimos 11 anos, 553 mil pessoas foram assassinadas no Brasil. Na Síria, que convive com um conflito armado há mais de sete anos, morreram 500 mil no mesmo período. O maior crime dos assassinos de escolas, creches e igrejas foi o delito de injetar no faz-de-conta da classe média uma dose de realidade. Difícil localizar no tempo o momento da virada. Mas tudo indica que o marco inaugural do novo ciclo ocorreu há quase duas décadas.
Em novembro de 1999, um estudante matou três e feriu cinco num cinema, em São Paulo. Conspurcou o templo sagrado da elite paulistana: o shopping center. Armado de metralhadora, produziu uma tragédia com a qual o brasileiro bem-nascido não estava acostumado. Ficou entendido que, a partir dali, o inferno era o limite.
O Brasil via no genocídio em conta-gotas da periferia um processo de auto-regulação da pobreza. Enxergava os corpos sem rosto como vítimas necessárias de um projeto não-formalizado de planejamento familiar. A chacina do shopping violou a regra do jogo. De repente, os cadáveres tinham nome e sobrenome. O sangue respingou nos sapatos chiques. Foi como se o tubo de imagem da TV, refúgio sempre tão seguro, sugasse o pedaço elegante da sociedade para o centro da cena, num absurdo processo de inclusão. Todos tinham virado parte do mesmo filme macabro.
A crise civilizatória do Brasil não parou mais de piorar. Bondade e solidariedade viraram gêneros de primeira necessidade. As pessoas andam mal-humoradas. Alunos agridem professores e vice-versa. Conversa entre membros da mesma família vira bate-boca. Por vezes, descamba para a troca de tapas. O debate político só é considerado eficiente quando uma parte consegue obrigar a outra a calar a boca. E o presidente da República acha que a solução para a violência é disseminar a posse de armas. O Brasil tornou-se uma prova de que países também enlouquecem.
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