PGR escancara atentados do STF à Constituição
A esse ponto chegou o Brasil: a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, acusa o presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, de violar a Constituição. Num despacho cirúrgico de sete folhas, Dodge esmiúça os atentados praticados contra o texto constitucional no âmbito do inquérito aberto no Supremo para apurar supostas ofensas à Corte e ameaças aos seus membros. Num gesto extremo, Dodge anuncia: "A procuradora-geral da República promove o arquivamento deste inquérito." E a plateia: Heimm?!? Como chegamos a isso?
"O sistema penal acusatório estabelece intransponível separação de funções na persecução criminal", escreveu Dodge. "Um órgão acusa, outro defende e outro julga. Não se admite que o órgão que julgue seja o mesmo que investigue e acuse." O que a procuradora afirma, com outras palavras, foi o seguinte: Toffoli instituiu a ditadura do Supremo. A Corte abre o inquérito, ela mesma conduz a investigação, ela mesma pode sentenciar.
Foram para o beleléu os mais elementares valores civilizatórios. "O sistema penal acusatório é uma conquista antiga das principais nações civilizadas", realçou Dodge, "foi adotado no Brasil há apenas trinta anos, em outros países de nossa região há menos tempo e muitos países almejam esta melhoria jurídica. Desta conquista histórica não podemos abrir mão, porque ela fortalece a justiça penal."
Não bastasse ter invadido a competência do Ministério Público como órgão titular da acusação, Toffoli escolheu a dedo o relator do processo, Alexandre de Moraes, esquivando-se do sistema de sorteio. "A decisão que determinou de ofício a instauração deste inquérito, designou seu relator sem observar o princípio da livre distribuição e deu-lhe poderes instrutórios", anotou Dodge, antes de constatar que houve uma quebra da "imparcialidade judicial na atuação criminal."
Dodge foi ao ponto: "O ordenamento jurídico vigente não prevê a hipótese de o mesmo juiz que entende que um fato é criminoso [Dias Toffoli] determinar a instauração da investigação e designar o responsável por essa investigação [Alexandre de Moraes]."
A procuradora envernizou seu argumento: "Juiz investigador existia no sistema penal inquisitorial abolido pela Constituição de 1988, que o substituiu pelo sistema penal acusatório. Nesta linha de raciocínio, o sistema penal acusatório não autoriza que a condução da investigação penal seja feita pelo Judiciário." Ordens de busca e apreensão e a censura à revista eletrônica Crusoé e ao site O Antagonista foram tomadas sem a atuação do Ministério Público Federal.
Noutra afronta ao texto constitucional, o inquérito de Toffoli colocou o Supremo no encalço de brasileiros que não deveriam ser investigados, processados e julgados na instância máxima do Judiciário. Dodge rendeu homenagens ao óbvio: "Note-se que a competência da Suprema Corte é definida pela Constituição tendo em conta o foro dos investigados e não o foro das vítimas do ato criminoso [os ministros do STF]. Ou seja, a competência do Supremo Tribunal Federal não é definida em função do fato de esta Corte ser eventual vítima de fato criminoso."
Há mais: "Considero necessário observar que a portaria que instaura o inquérito não especifica objetivamente os fatos criminosos a apurar." Não há vestígio de especificação objetiva das notícias falsas a coibir, das calúnias, difamações ou injúrias a reparar, das ameaças à segurança de ministros e familiares.
Há pior: o inquérito de Toffoli corre em segredo. Nem mesmo aquela que deveria ser a titular do procedimento sabe o que se passa: "Esclareço que, como titular da ação penal, assim que instaurado por ato de ofício este inquérito, no dia 15 de março de 2019, encaminhei a manifestação para pontuar as graves consequências advindas da situação ali retratada. Transcorrido período superior a 30 dias desta instauração, não houve, sequer, o envio dos autos ao Ministério Público, como determina a própria lei processual penal."
Alexandre de Moraes, o relator que Dias Toffoli retirou do bolso do colete, mandou ao arquivo o arquivamento determinado por Raquel Dodge. Era previsível. Mas o dar de ombros do ministro injeta mais uma anomalia num caso que já é demasiado extravagante. A questão agora é saber até quando o Supremo, guardião da Constituição, permitirá que dois dos seus ministros encostem na biografia dos outros nove um inquérito que promove atentados em série contra o texto constitucional.
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