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Josias de Souza

Só o Exército pode salvar a reputação do Exército

Josias de Souza

19/04/2019 20h42

A reputação de uma instituição é a soma dos palavrões que ela é capaz de inspirar nas esquinas. Em Guadalupe, na zona oeste do Rio de Janeiro, ocorre uma incoerência: o Exército acha que é uma coisa e sua reputação nas esquinas é outra.

"O Exército matou meu filho", disse Aparecida Macedo, ao enterrar nesta sexta-feira o filho Luciano Macedo Moraes. Trata-se do catador de material reciclável alvejado pela mesma chuva de 83 tiros com que uma patrulha do Exército executou o músico Evaldo Rosa.

Na véspera, o comandante militar do Sudeste, general Luiz Eduardo Ramos, comentou as mortes do catador Luciano e do músico Evaldo. "Foi uma fatalidade", disse o general, após participar de almoço com Jair Bolsonaro, em São Paulo.

"O pessoal tem colocado 'assassinatos', mas não é", acrescentou o general. "Os soldados que estavam em missão tinham sido emboscados. Quem, como eu, já teve numa situação dessa… Tensão, é difícil."

Na semana passada, após cinco dias de silêncio, o próprio Bolsonaro dissera: "O Exército não matou ninguém. O Exército é do povo. A gente não pode acusar o povo de ser assassino." Para Bolsonaro, o que houve foi "um incidente".

Fatalidade, a palavra usada pelo general, significa uma consequência inevitável do destino. Incidente, o vocábulo empregado pelo capitão, é um fato que desempenha papel secundário, incidental. As duas expressões desrespeitam a dor das famílias de Luciano e Evaldo.

Ironicamente, o catador Luciano morreu levando consigo uma noção sobre a reputação do Exército que sua mãe já não consegue cultivar. Ao enterrar Luciano, Aparecida relatou um diálogo que mantivera com ele:

"Ainda falei para ele: 'Vai fazer barraco aí?'. Ele disse: 'Fica calma coroa, o Exército está ali. A gente está seguro'. O Exército matou meu filho. O Exército matou meu filho", declarou Aparecida.

Luciano morreu por ter tentado ajudar os familiares de Evaldo, que estavam com o músico no carro que a patrulha do Exército fuzilou. Ferido, ele não foi socorrido pelos soldados. Hospitalizado, não mereceu nenhuma atenção do Exército. Morto depois de duas cirurgias, tornou-se uma fatalidade, um incidente.

Gente que não tem nada a dizer, como o general Luiz Ramos e o capitão Jair Bolsonaro, deveria se abster de demonstrar em palavras a sua falta de respeito com os mortos. Só o Exército pode salvar a reputação do Exército. Mas a instituição, com a ajuda de Bolsonaro, parece determinada a assassinar também a própria imagem.

Sobre o autor

Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.

Sobre o blog

A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.