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Josias de Souza

Bolsonaro rende-se ao óbvio em rede nacional

Josias de Souza

02/05/2019 03h12

Num raro instante de lucidez, o redator que preparou o discurso lido por Jair Bolsonaro em rede nacional de rádio e TV no Dia do Trabalhador acomodou nos lábios do presidente duas pérolas. Eis a primeira: "O caminho é longo". Agora, a segunda: "Unidos ultrapassaremos essas dificuldades iniciais."

Parecem coisas óbvias. Mas Bolsonaro tropeça no óbvio desde que chegou ao Planalto. Tomado a sério, o reconhecimento de que o "caminho é longo" vale por um desmentido. É como se o capitão pedisse à plateia para esquecer o discuso da campanha, que vendia soluções fáceis, disponíveis na virada da primeira esquina.

A segunda obviedade é ainda mais valiosa. Além de admitir que sua gestão arrosta "dificuldades iniciais", Bolsonaro fala em união para superá-las. Se não for da boca para fora, esse "unidos ultrapassaremos" pode representar um convite ao diálogo com gente que pensa diferente —algo que, para o capitão, seria revolucionário.

Caindo-lhe a ficha sobre a longa distância a pecorrer, Bolsonaro talvez pare de jogar pedras no seu próprio caminho. Falou tanto em governar "sem viés ideológico" que acabou enviesando sua gestão. Atrasou o relógio até a Era da Guerra Fria. Vê comunistas embaixo da cama. Não notou que a ideologia —a sua ou a dos outros— é o caminho mais longo entre um projeto e sua realização.

Se o redator do discurso de 1º de Maio foi fiel ao pensamento do orador, Bolsonaro precisa deflagrar um processo de desintoxicação de sua retórica. Jamais roçará algo parecido com uma união se continuar caçando esquerdistas em universidades, censurando comerciais por ojeriza à diversidade, idolatrando polemistas e concedendo salvo-conduto aos filhos para plantar bananeira dentro da sua Presidência.

Ou o capitão se ajusta ou o caminho do seu governo pode não ser tão longo. Ao contrário, talvez seja bem mais curto do que o presidente imagina.

Sobre o autor

Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.

Sobre o blog

A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.