Fisiologismo virou Desdêmona que nunca morre
Antes de tudo, é preciso pedir desculpas por misturar o profano —o fisiologismo— com o sublime —a literatura shakespeariana. Deve-se a ousadia à licença poética que Shakespeare se autoconcedeu para propiciar a Desdêmona um célebre suspiro post-mortem. Algumas linhas depois de ter sido sufocada por Othello, Desdêmona ganhou uma sobrevida. É como se o autor desejasse dar-lhe uma última fala digna antes de arrancá-la de cena. Ela protesta contra a própria morte, se despede e, só então, morre definitivamente.
Com o fisiologismo acontece algo parecido. Todo novo Othello que assume o Planalto anuncia a morte do toma-lá-dá-cá. Entretanto, poucos capítulos depois do início do governo —qualquer governo— o flagelo revive. Um detalhe injeta sordidez na comparação: diferentemente do que sucede com Desdêmona, o fisiologismo não morre. Ele estrebucha, protesta contra o hipotético sufocamento. Depois, levanta barricadas no Congresso, pede mais cargos, exige mais verbas e alcança a graça da sobrevida eterna.
Autoproclamado cavaleiro de uma nova ordem, Jair Bolsonaro decretou o fim do "é dando que se recebe". No mês passado, porém, autorizou Onyx Lorenzoni a entregar às bancadas estaduais listas de cargos de segundo escalão. Dias atrás, o próprio capitão encostou o umbigo no balcão para avalizar a recriação de dois ministérios que havia fundido numa única pasta. Coisa destinada a saciar o apetite do centrão. Ficou entendido que Bolsonaro é "mais do mesmo", só falta ajustar o preço.
Em 1996, em visita ao Nordeste, o então presidente Fernando Henrique Cardoso anunciara a morte do fisiologismo. A platéia ficou em dúvida: o presidente saíra da realidade ou adotara o cinismo como método de governo? Verificou-se que a segunda opção era a correta. Nessa época, o toma-lá-dá-cá ganhou um verniz sociológico. FHC evocava Max Weber e sua ética da responsabilidade como álibi para combinar modernidades como o Plano Real e a Lei de Responsabilidade Fiscal com o arcaísmo das alianças promíscuas e a rendição aos maus costumes.
Na bica de obter um segundo mandato, em 2006, Lula cavalgou o mesmo discurso. Depois de um primeiro reinado em que conviveu com um consórcio parlamentar remunerado por baixo da mesa, proclamou que a maioria congressual passaria a ser assegurada por um "governo de coalizão", com metas e princípios deitados sobre o papel. A piada se desfez quando o PMDB (hoje MDB) decidiu testar a eficácia do novo modelo encaminhando a Lula uma petição de cargos –do posto de ministro da Saúde, ao comando à dos Correios e de Furnas.
Para contar toda a história, é preciso recorrer a outro personagem de Shakespeare, o rei Ricardo 3º. Preparava-se para a batalha de sua vida. O exército de Henrique, o conde de Richmond, marchava contra suas tropas. O embate determinaria o novo monarca da Inglaterra.
O rei requisitou a preparação de seu cavalo preferido. Envolto num esforço para ferrar os cavalos da tropa real, o ferreiro alegou que precisaria de tempo para providenciar novas ferraduras. Impaciente com o avanço do inimigo, o cavalariço de Ricardo pediu pressa. Deu-se o desastre.
Ajustadas as três primeiras ferraduras, verificou-se que faltavam dois pregos para a fixação da quarta. Na correria, a peça foi colocada com desmazelo. No fervor da batalha, desprendeu-se. O animal caiu. O rei foi ao chão. "Um cavalo! Um cavalo! Meu reino por um cavalo!", bradou Ricardo 3º. Por conta de um par de pregos, perdeu-se um trono.
No embate entre os governos e o Congresso, a encrenca começou com Tancredo Neves, ainda na fase de composição da frente que prevaleceria no Colégio Eleitoral que marcou o alvorecer da redemocratização. Sentido o chão fugir-lhe dos pés, Tancredo bradou: "Meu reino! Meu reino! Uma aliança pelo meu reino!" E nasceu a Frente Liberal (ex-pefelê, hoje DEM), que se juntou ao PMDB, que se enganchou com petebês, pepês e que tais.
A morte salvou Tancredo da execução dos acordos que ele celebrou. Hedeiro dos compromissos, José Sarney honrou-os meticulosamente. Desde então, a política brasileira cavalga em trote de cavalo manco. Perde uma batalha atrás da outra. Os partidos viraram agremiações 100% financiadas pelo déficit público. E o Brasil tornou-se um belo ponto no mapa, à espera de ser transformado numa nação.
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