Damares consegue dar sentido filosófico a Xuxa
A ministra Damares Alves (Direitos Humanos) é uma evidência ambulante do absurdo que representa o desejo do ministro Abraham Weintraub (Educação) de esvaziar o ensino de filosofia. O brasileiro nunca precisou tanto de conhecimentos de gente como Sócrates.
Sócrates inovou a filosofia por incontáveis razões, entre elas por seu método de ensino. Ele não afirmava. Preferia perguntar. Acreditava que, pelo diálogo, emergiria uma verdade. Não a verdade que alguém impõe a outro, mas uma verdade nascida do consenso. E, portanto, mais verdadeira.
Ministra do tipo viral, Damares contaminou novamente a internet. No último sábado, as redes sociais foram intoxicadas por um vídeo contendo declaração espirrada por ela num evento religioso de abril de 2018. Na peça, Damares entoa a canção do filme Frozen. Súbito, esguicha na atmosfera considerações sobre a sexualidade de Elza, a princesa da Disney:
"Sabe por que ela termina sozinha em um castelo de gelo? Porque é lésbica!", afirmou Damares. "O cão está muito bem articulado. E nós estamos alienados". A ministra acrescenta: Elza "vai acordar a Bela Adormecida com um beijo gay".
No melhor estilo socrático, Xuxa pendurou um lote de interrogações na rede. "Pensei: 'falo ou não falo? Falo ou não falo?'." A apresentadora decidiu falar: "[…] Vivemos um momento em que falam muito sobre liberdade de expressão. Mas, meu Deus, onde o mundo vai parar com tanta ignorância, falta de respeito com as escolhas ou condições das pessoas? Onde está o respeito pelo ser humano? Como permitem certas coisas?"
A religião de cada um é questão individual. Não deve fazer parte do embate político. O mundo e a vida são coisas tão misteriosas que nenhuma teoria sobre a origem e o destino do ser humano soará mais improvável ou menos absurda do que a outra. Mas é impossível deixar de se assombrar com o poder crescente na vida nacional da religião em seu estado mais impermeável (pode me chamar de fundamentalismo).
O poder real de personagens como Damares, que conversa com Deus nos galhos do pé de goiaba; ou Olavo de Cavalho, que se considera o próprio deus de uma religião particular, dão ao governo de Jair Bolsonaro uma aparência medieval. É como se o capitão quisesse transformar um pedaço do seu governo numa vertente religiosa em seu estado mais impermeável (pode me chamar de fundamentalismo).
Em outro vídeo tóxico de maio de 2016, divulgado aqui no final do ano passado, nas pegadas da conversão de Damares em ministra do aiatolá Bolsonaro, a pastora do capitão disse coisas assim: "As instituições estão todas piradas" no Brasil. Entretanto, "há uma instituição que não pirou: a igreja de Jesus".
Damares sentenciou: "Chegou a nossa hora. É o momento de a igreja ocupar a nação. É o momento de a igreja governar. Se a gente não ocupar esse espaço, Deus vai cobrar da gente."
O sono da razão gera assombrações. E a sonolência parece ficar cada vez mais profunda, na noite atual. Mais que nunca é preciso perguntar, e fazer a razão falar. No contexto atual, a interrogação funciona como uma vacina —vacina contra a intolerância, contra o preconceito, contra a imbecilidade.
Ecoe-se Xuxa: "Meu Deus, onde o mundo vai parar com tanta ignorância, falta de respeito com as escolhas ou condições das pessoas?" Damares Alves, quem diria, conseguiu a façanha de atribuir um conteúdo filosófico às manifestações da ex-rainha dos baixinhos, eterna princesa de muitos adultos. Sinal dos tempos!
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