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Josias de Souza

Bolsonaro vê nas ruas o álibi para culpar alguém

Josias de Souza

26/05/2019 04h47

Quando Jair Bolsonaro trombeteou no Twitter o texto que se referia ao Brasil como um país "ingovernável", dizia-se que a manifestação deste domingo seria contra o Congresso, o Supremo, a mídia e todos os grupos que puxam o tapete do capitão. Com o passar dos dias, o presidente ajustou seu linguajar nas redes sociais aos conselhos dos militares que o rodeiam. E a pauta dos atos de rua foi se tornando mais aguada. Há três dias, em café da manhã com jornalistas, Bolsonaro cuidou de imunizar-se contra eventuais excessos : "Quem defende o fechamento do Supremo Tribunal Federal e do Congresso Nacional está na manifestação errada."

Inventou-se, supremo paradoxo, um protesto a favor. Alega-se que os mosqueteiros da infantaria pró-governo decidiram ocupar o asfalto para prestigiar o presidente e endossar as causas que lhe são caras. Um por todos, todos por hummmmmm… Louve-se o direito inalienável de qualquer um de sair às ruas para defender qualquer coisa. Entretanto, como 57 milhões de eleitores acabaram de comparecer às urnas para fazer a mesma coisa, fica evidente que a serventia desse do protesto a favor não é senão oferecer a Bolsonaro um álibi para botar a culpa em alguém. O presidente vê culpados pelo fiasco dos primeiros cinco meses de sua gestão em toda parte, exceto no espelho.

Governantes como Bolsonaro, que cultivam teorias conspiratórias para tudo, inspiram o mesmo sentimento que os céticos nutrem em relação a pessoas religiosas. É difícil acreditar no que elas acreditam. A metafísica acaba sendo mais divertida do que o materialismo chato, que procura uma lógica por trás de cada fato. Desde que tomou posse, o capitão revelou-se um mágico. Transforma calmaria num roteiro de intriga, emoção e perfídia. Faz aparecer uma crise do nada. Retira uma crise de dentro da outra. Magnifica crises pequenas, tornando-as gigantescas, barulhentas e ameaçadoras. Depois, tira da cartola as teorias conspiratórias.

Todos sabiam que a renovação das urnas de 2018 não havia extirpado do Congresso o tumor do centrão. Mas Bolsonaro dizia ter encontrado uma vacina contra o fisiologismo. Governaria acima dos partidos, vinculando-se às bancadas temáticas do Congresso. Deu no que está dando. O capitão ainda não se dignou a chamar para uma conversa os deputados e senadores sérios (sim, eles existem). Tampouco aproximou-se dos novatos (sim, eles também estão lá). Com 28 anos de experiência política, Bolsonaro dedica-se no momento a não fazer política. E acredita que não tem nada a ver com as derrotas que sofre no Legislativo. Isso é obra de conspiradores.

Em campanha, o capitão dissera que não faria concessões ao troca-troca. Acenou com um ministério de notáveis. Entregou três pastas ao DEM sem obter os votos do partido. Acomodou no Turismo um dono de laranjal do PSL. Confiou o Meio Ambiente a um condenado por improbidade que conspira contra o ambiente inteiro. Colocou para cuidar dos Direitos Humanos uma pastora evangélica que enxerga lesbianismo em desenho animado.

Como se fosse pouco, Bolsonaro revelou-se um presidente da cota pessoal do polemista Olavo de Carvalho. Criou uma cota ministerial para o encrenqueiro da Virgínia. Pelo Ministério da Educação, já passaram dois "olavetes". O primeiro ergueu barricadas contra o "marxismo cultural". Tropeçou nas próprias pernas. O segundo dedica-se a combater comunistas que enxerga sob a cama e a brigar com as universidades. O "olavete" do Itamaraty guerreia contra o "globalismo" e faz cara feia para o principal parceiro comercial do país, a China. Quando não está desorientando seus ministros, o guru Olavo está desqualificando os militares.

Juntos, o polemista predileto de Bolsonaro e os notáveis da equipe ministerial ajudam o presidente no seu esforço diuturno para executar a tarefa prioritária do Planalto: fabricar crises. São tantas e tão frequentes, que oferecem farta matéria-prima para os que desejam retardar no Congresso as únicas pautas benfazejas que o governo foi capaz de erigir: a reforma da Previdência e o pacote anticrime e anticorrupção. Paulo Guedes ameaça ir embora. Sergio Moro sonha com uma poltrona no Supremo. Mas Bolsonaro não tem nada a ver com o desânimo dos ex-superministros. É culpa dos conspiradores da mídia.

Qualquer criança de cinco anos consegue perceber que a imprensa não se confunde com as crises que infestam Brasília. Os repórteres mudam de assunto sempre que o governo substitui uma confusão por outra. No dia em que cessarem os curtos-circuitos, as manchetes vão parar de dar choque.

No momento, o ano de 2019 está indo a pique. O IBC-BR, espécie de prévia do PIB divulgada pelo Banco Central, registrou queda de 0,68% no primeiro trimestre de 2019 em comparação com o mesmo período do ano passado. O Ministério da Economia, que já sonhou com um índice próximo dos 3%, anotou no relatório bimestral de execução orçamentária uma estimativa de crescimento anual de 1,6%. A pesquisa Focus, na qual o BC reúne a posição dos especialistas do mercado, anotou em sua penúltima edição uma estimativa ainda mais magra: 1,24%. Há na praça quem aposte num desempenho abaixo de 1%.

Bolsonaro, naturalmente, não tem nada a ver com a perda de tempo que enferrujou o otimismo dos investidores e lubrificou o desespero dos mais de 13 milhões de brasileiros que se encontram no olho da rua. Isso é coisa dos conspiradores da oposição. O mal maior não está escondido: é a herança maldita dos governos anteriores. Os problemas se revelaram tão maiores do que pareciam que, no futuro, quando os feitos do atual governo não baterem com as promessas feitas na campanha, os conspiradores do passado, esmigalhados nas urnas, é que serão culpados.

Neste domingo, quando os manifestantes erguerem cartazes a favor das reformas econômicas e morais, estarão culpando o Congresso, no atacado, e o centrão, no varejo. Quando gritarem palavras de ordem a favor da Lava Jato, é contra o Supremo que estarão se insurgindo. Para usar uma terminologia da moda, os manifestantes se auto-converteriam em "idiotas úteis" se tratassem Bolsonaro como parte do problema. Seria o mesmo que admitir que o capitão virou um conto do vigário no qual seus eleitores caíram. Melhor enaltecer o presidente. Não resolve o problema. Mas fornece a Bolsonaro o álibi para que ele, aliviado, terceirize todas as culpas.

Sobre o autor

Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.

Sobre o blog

A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.