Criticar massacre de preso virou chatice no Brasil
Há uma mutação ética nas cadeias e no Brasil. Dentro dos presídios, o sangue jorra sem culpa. Fora, o incômodo com a matança é condenado por chatice. Dentro, ouve-se o barulho dos membros das facções matando-se uns aos outros. Fora, escuta-se o silêncio da sociedade, grata à bandidagem pelo autoextermínio.
Em menos de 24 horas —entre o domingo e a segunda-feira— foram executados pelo menos 55 presos nas cadeias do Amazonas. Alguns foram asfixiados. Outros foram mortos a golpes de cabos de escovas de dente. Dizer que isso é um horror soa ridículo. Por duas razões.
Primeiro porque meia centena de cadáveres parece pouco para os padrões nacionais. Há dois anos rebeliões em cadeias do Amazonas, de Roraima e do Rio Grande do Norte produziram 126 cadáveres. Muitos foram decapitados. Alguns, esquartejados.
A segunda razão é que o horror adquiriu entre nós uma naturalidade hedionda. É cada vez menor o número de brasileiros dispostos a esboçar reação. É matança de bandidos? Pois que se matem! De preferência, com requintes de crueldade.
Seria injusto atribuir a falência do humanismo ao capitão. Em 2017, bem antes da disputa presidencial, o Datafolha informara que 57% dos brasileiros concordavam com a máxima segundo a qual "bandido bom é bandido morto."
Ou seja, ao eliminar desafetos, as facções criminosas não fazem senão satisfazer a vontade da maioria. Produzem seus carandirus sem a participação da Polícia Militar. Unem útil ao agradável. Defendem seus territórios e seus negócios. E ainda atendem à demanda social por sangue.
Num cenário assim, o discurso encrespado de Jair Bolsonaro virou sentimento médio. O capitão apenas ecoa uma agenda pertencente ao pedaço do Brasil que decidiu viver na Idade Média. Bolsonaro é o efeito. A causa é a perpetuação de um sistema político que não aprendeu a produzir soluções.
Na campanha presidencial, em meio a críticas ao Supremo e ao Congresso, Bolsonaro trazia na ponta da língua um plano de governo para lidar com as facções criminosas. Revelava-se adepto do modelo da Indonésia, onde traficantes e consumidores de drogas são condenados à morte.
Bolsonaro dizia apreciar também a fórmula das Filipinas, onde os bandidos são passados nas armas sem a necessidade de uma sentença formal. "Tinha dia de morrer 400 vagabundos lá. Resolveu a questão da violência", afirmava.
Como não há pena de morte no Brasil, o capitão distribui portes de armas para civis e providencia o "excludente de ilicitude" —um outro nome para a licença concedida aos policiais que quiserem contribuir para a consolidação da máxima segundo a qual "bandido bom é bandido morto."
De resto, Bolsonaro cultiva um amor maternal pela superlotação carcerária. "Cadeia é como coração de mãe, sempre cabe mais um." Contra esse pano de fundo, não dá mais para analisar fenômenos como os massacres carcerários em termos de justiça e de moral.
A justiça agora se faz também nas celas, onde o crime e a sentença de morte moram perto um do outro. Dentro da cadeia, a fixação dos limites da moral dispensa régua, compasso e marcos civilizatórios. Tudo se resolve com um cabo de escova de dentes enfiado na jugular. Do lado de fora, a moral virou uma abstração imensurável.
O que um dia foi execrável, hoje é rotina. Na época do Carandiru, há 27 anos, massacre de presos era coisa abominável. Hoje, criticar o extermínio de presidiários virou uma chatice impatriótica.
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