Delinquentes sonham com a pizza na Lava Jato
O conta-gotas que pinga mensagens tóxicas sobre as reputações de Sergio Moro e dos procuradores da força-tarefa de Curitiba vai mergulhando a Lava Jato num ambiente novo. Nele, o ex-juiz e os procuradores enfrentam um processo lento e corrosivo de dessacralização. Descobriu-se que, no escurinho do Telegram, os super-herois da cruzada anticorrupção também estavam sujeitos à condição humana. A constatação deixa assanhados os delinquentes.
A leitura do primeiro lote de mensagens conduziu a uma conclusão inescapável: Sergio Moro desenvolveu com Deltan Dallagnol uma proximidade juridicamente imprópria. Os dois trocaram figurinhas, combinaram ações, consultaram-se mutuamente. Ultrapassaram a fronteira que separa o relacionamento funcional do comportamento abusivo. O então juiz por vezes adotou um timbre de superioridade hierárquica, imiscuindo-se no trabalho da Procuradoria.
O comportamento de Moro destoou da isenção que a Constituição exige de um magistrado. Ajustando-se à nova realidade, o ex-juiz migrou da seara técnica para o campo da política. Ouviram-se críticas de encrencados e até de ministros do Supremo. Entretanto, os críticos também têm pés de barro. Os condenados perambulam pela conjuntura acorrentados a processos apinhados de provas. E a Suprema Corte não chega a se notabilizar pelo formalismo processual.
No Supremo, há ministros que confraternizam com investigados. Não se privam de julgar casos de amigos. Um deles julga até em benefício de ex-chefes. Os demais fingem não ver. Há na Corte duas turmas. Uma é conhecida por prender. Outra solta a granel. Estabeleceu-se uma balbúrdia que esculhamba a jurisprudência do próprio tribunal. Consolidou-se a sensação de que um pedaço do tribunal age para proteger larápios. Pune apenas de raro em raro. E às vezes transfere ao Legislativo a prerrogativa de perdoar.
Nos lotes subsequentes de mensagens, o conta-gotas pingou nas manchetes manifestações que potencializaram o processo de autocombustão dos investigadores. Descobriu-se que autoridades do Estado comportavam-se como adolescentes num grupo de família de um aplicativo de celular. Vieram à luz tolices como "in Fux we trust". Ou pérolas juvenis que aproximaram a força-tarefa de uma arquibancada de estádio: "Aha, uhu o Fachin é nosso".
Neste domingo, em parceria com o The Intercept, a Folha trouxe à luz algo bem mais constrangedor. Descobriu-se que Deltan Dallagnol montou com o colega de Procuradoria Roberson Pozzobon um plano de negócios de eventos e palestras para extrair lucros da fama adquirida na Lava Jato. "Vamos organizar congressos e eventos e lucrar, ok?", anotou Deltan numa das mensagens. "É um bom jeito de aproveitar nosso networking e visibilidade."
Os detalhes falam por si. Os procuradores cogitaram constituir uma empresa. Para mascarar a operação, a firma teria como sócias as mulheres dos palestrantes. "Se fizéssemos algo sem fins lucrativos e pagássemos valores altos de palestras pra nós, escaparíamos das críticas, mas teria que ver o quanto perderíamos em termos monetários", escreveu Deltan. E Pozzobon: "Temos que ver se o evento que vale mais a pena é: i) Mais gente, mais barato ii) Menos gente, mais caro. E um formato não exclui o outro".
É como se os procuradores, depois de elevar suas estaturas no esforço para desmontar o aparato de corrupção, conspirassem para rebaixar o pé-direito da Lava Jato, aderindo à máxima do "quanto eu levo nisso". Perderam o recato. Esqueceram de maneirar. Embora a empresa não tenha sido aberta, a retórica do acobertamento apequenou os autores das mensagens. Tudo muito triste e constrangedor —exceto para os condenados, que soltam fogos.
Em cinco anos, a Lava Jato interrompeu um ciclo de impunidade que durava desde a chegada das caravelas. Foram à grelha empresários de grosso calibre. Políticos poderosos dos maiores partidos tornaram-se impotentes. Encrencaram-se três ex-presidentes vivos. A oligarquia corrupta jogava com o tempo e com as cartas dos recursos judiciais. De repente, uma operação de busca e apeensão clandestina nos celulares das autoridades devolveu ao baralho o curinga da pizza.
Ouve-se ao fundo um velho coro: "A oligarquia unida jamais será vencida". A estridência do coro contrasta, porém, com a inconsistência da mistura. Por ora, há muito orégano e pouca massa. As mensagens trocadas no Telegram transformam os ex-heróis em vítimas da ética de mostruário que eles cultivaram ao longo das investigações. Mas ainda não surgiram nas mensagens os indícios de fabricação de provas tão ansiados pelos larápios.
O forno foi religado. Em agosto, a primeira turma do Supremo julgará o pedido de suspeição de Moro, protocolado pela defesa de Lula. O placar registra um empate: dois a dois. Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski a favor da abertura da cela de Lula. Edson Fachin e Cármen Lúcia contra. O tira-teima está nas mãos do decano Celso de Mello. A plateia observa com apreensão.
Muitos gostariam de utilizar as mensagens como lenha para assar uma grande pizza. Visto que não há evidências de fabricação de provas, que os condenados exercitaram o sacrossanto direito de defesa e que as sentenças de primeiro grau foram avalizadas em instâncias superiores do Judiciário, será necessário responder a algumas perguntas.
Por exemplo: O que fazer com as confissões, as perícias e as obras custeadas com dinheiro roubado no tríplex do Guarujá? Mais: assando-se a primeira pizza, como ficam as provas que levaram à condenação de Lula também no caso do sítio de Atibaia? Pior: a quem devolver os R$ 52 milhões encontrados no cafofo do Geddel? Para onde enviar os milhões repatriados de contas na Suíça? Como apagar a fita com as imagens de Rocha Loures, o ex-assessor de Temer, recebendo a mala de dinheiro da JBS? Onde enfiar o áudio com o achaque de R$ 2 milhões que Aécio aplicou em Joesley Batista?
Para resumir: antes de assar a pizza, será necessário definir o que fazer com a corrupção descoberta pela Lava Jato. A roubalheira, de proporções amazônicas, não cabe no forno.
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