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Josias de Souza

Jair Bolsonaro tornou-se sócio do fiasco de Macri

Josias de Souza

12/08/2019 04h53

O nariz de um presidente da República pode brilhar, espirrar e coçar. Mas jamais deve se meter onde não é chamado. Ao tomar o partido de Mauricio Macri, candidato à reeleição, Jair Bolsonaro meteu o bedelho nos assuntos internos da Argentina. Fez isso a pretexto de ensinar os eleitores do país vizinho a votar direito, de preferência à direita. Com isso, o capitão tornou-se sócio de um fiasco.

A chapa presidencial encabeçada por Alberto Fernández, com a ex-presidente Cristina Kirchner acomodada na vice, deu uma surra em Macri nas eleições prévias realizadas neste domingo (11). Obteve 47,37% dos votos, contra 32,23% amealhados pelo preferido de Bolsonaro. Mantido esse cenário, Macri será enviado de volta para casa já no primeiro turno das eleições, marcadas para 27 de outubro. E as relações bilaterais do Brasil com a Argentina tomarão o caminho do brejo.

Desde que tomou posse, Bolsonaro derramou muita saliva no seu esforço para convencer os eleitores da Argentina de que seria melhor ter paciência com o liberalismo de Mauricio Macri e seus desacertos do que devolver ao Poder a chapa envenenada pela presença da antecessora esquerdista Cristina Kirchner. Com o auxílio do chanceler Ernesto Araújo, o presidente mandou às favas a tradição do Itamaraty, que tinha na política de não intervenção em assuntos domésticos de outros países uma de suas principais marcas.

No último mês de maio, em cerimônia de formatura do Instituto Rio Branco, o chanceler Araújo declarou à turma de novos diplomatas: "Diplomacia não significa ficar em cima do muro. Não é ver os grandes embates e aderir ao vencedor. Diplomacia precisa ter sangue nas veias." O resultado das eleições primárias da Argentina revela que o tipo sanguíneo de Araújo, em sistemática ebulição, não é o mais adequado ao Itamaraty. O sangue que deve correr nas veias de um bom diplomata é outro: o sangue-frio.

Na mesma solenidade de formatura, Jair Bolsonaro discursou em timbre militar: "Quando acaba a saliva, entra a pólvora. Não queremos isso." Os repórteres perguntaram ao presidente se estava pensando na Venezuela quando espalhou pólvora em ambiente diplomático.

Ao responder, o capitão desceu do muro, só que do lado errado: "Não, aminha preocupação é com a Argentina hoje em dia." Segundo ele, uma nova Venezuela brotaria na vizinhança se o esquerdismo de Cristina Kirchner retornasse à Casa Rosada, sede do governo argentino.

Horas depois, discursando para uma plateia de evangélicos, Bolsonaro afirmou que um "milagre" salvou sua vida depois da facada que levou durante a campanha presidencial. Disse encarar a Presidência como "missão de Deus." Parece acreditar que todos aceitarão as presunções que cultiva a seu próprio respeito. Em matéria de política internacional, isso inclui concordar que sua missão divina lhe confere a prerrogativa de tratar Buenos Aires como uma espécie de Brasília hipertrofiada.

O eleitorado portenho ensina a Bolsonaro que ele faria muito bem a si mesmo se passasse a olhar para o quintal do vizinho com olhos de aluno, não de professor. Levando a coisa a sério, talvez perceba que o governo de Macri é um extraordinário aviso, não um bom exemplo.

Assim como Bolsonaro, Macri chegou à Presidência surfando a raiva da maioria do eleitorado com a velha política e o esquerdismo sem resultados. A esperança de prosperidade resultou em grossa decepção. Deve-se a nova perspectiva de ascensão do peronismo à moda Kirchner à queda dos indicadores econômicos. As reformas prometidas por Macri viraram suco. Seu discurso liberal virou pó. Recorreu até ao congelamento de preços contra a inflação.

Bolsonaro tem muito a desaprender com Macri. A exemplo do capitão, o atual presidente argentino também encostou sua administração na figura do presidente americano Donald Trump. Nem por isso a Argentina livrou-se do colapso econômico. Evidência de que, nas relações internacionais, o pragmatismo e o equilíbrio valem mais do que o personalismo ideológico.

Confirmando-se a derrocada de Macri, as declarações de amor feitas por Bolsonaro podem custar caro. De saída, fica ameaçado o acordo comercial recém-firmado entre o Mercosul e a União Europeia. O favorito Alberto Fernández já declarou que, eleito, pretende rever esse acordo.

Sobre o autor

Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.

Sobre o blog

A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.