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Josias de Souza

Jair Bolsonaro opera na Argentina sem bússsola

Josias de Souza

27/10/2019 04h25

A pluralidade de interlocutores faz da diplomacia algo extremamente singular. A atividade é feita de tradição e princípios. Nela, a regra é sempre menos perigosa do que a improvisação. Sob Jair Bolsonaro, porém, subverteu-se até o mais trivial dos princípios. Foi para as cucuias o princípio da não intervenção em assuntos internos de outros países. Ao meter-se na disputa presidencial da Argentina, Bolsonaro conseguiu a proeza de se tornar inimigo de um presidente que as urnas ainda nem deram à luz. Isso pode ser péssimo para os negócios.

Os argentinos irão à sorte do voto neste domingo. As pesquisas indicam que Mauricio Macri, o preferido de Bolsonaro, será derrotado por Alberto Fernández, que carrega Cristina Kirchner na vice. De acordo com o vaticínio do capitão, a Argentina "vai virar uma nova Venezuela". Ainda que virasse uma sucursal do inferno, o governo brasileiro teria de dialogar com o capeta. Por uma razão singela: a Argentina é a terceira maior parceira comercial do Brasil.

Em 2018, a soma de exportações e importações revela negócios de US$ 25,6 bilhões. As operações foram superavitárias para o Brasil em US$ 3,86 bilhões. Em 2017, o saldo positivo foi ainda maior: US$ 8,18 bilhões. Num cenário assim, a animosidade de Bolsonaro pode custar caro. O preço ficará ainda mais amargo se o prejuízo alcançar o acordo firmada entre Mercosul e União Europeia.

O presidente brasileiro não decide quem os argentinos vão colocar na Casa Rosada. Cabe-lhe definir apenas a melhor estratégia para se relacionar com o eleito, seja quem for. O diabo é que, em matéria de política externa, Bolsonaro diz uma coisa e pratica o contrário. Diz promover relações internacionais "sem viés ideológico". Na prática, idealizou com Macri um relacionamento do tipo Dilma-Kirchner ou Lula-Chávez. Em vez de aprender com os erros dos antecessores, Bolsonaro mimetiza-os. Sofre da mesma patologia: a soberba da infalibilidade.

Quanto mais erra, mais Bolsonaro persiste na dissimulação. Nos Estados Unidos, declarou-se apaixonado por Donald Trump, agora às voltas com um pedido de impeachment. Em Israel, o capitão encostou sua imagem na figura do primeiro-ministroBenjamim Netanyahu, que comunicou há uma semana      que não conseguirá formar um governo de coalizão, abrindo espaço para que o rival Benny Gantz o substitua no comando do país.

Achegando-se a Trump, Bolsonaro inquietou a China, maior parceira comercial do Brasil. Aproximando-se de Netanyahu, irritou árabes e muçulmanos, grandes clientes do agronegócio brasileiro. Agora, percorre a Ásia e o Oriente Médio num esforço para reduzir danos, preservar negócios e atrair investimentos.

Bolsonaro demora a peceber que, nas relações internacionais, o pragmatismo é melhor conselheiro do que o ódio o amor. Na diplomacia, nenhum sentimento deve estar acima do interesse nacional. Personalismo e ideologia são os dois caminhos mais curtos para o brejo. Sobretudo num instante em que o Itamaraty opera sem bússola. Nesse ambiente, não poderia haver pior solidão do que a companhia do chanceler Ernesto Araújo —ministro da cota do polemista Olavo de Carvalho. Não há o risco de dar certo.

 – Atualização feita às 22h02 deste domingo (27/10): O oposicionista Alberto Fernández derrotou Mauricio Macri no primeiro turno.

Sobre o autor

Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.

Sobre o blog

A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.