Planalto teme que revolta de PMs vire ‘nacional’
Josias de Souza
07/02/2012 06h11
Relatórios confidenciais dos órgãos de "inteligência" do governo fizeram acender uma luz amarela no painel de controle do Palácio do Planalto. Indicam que os ingredientes que converteram a greve da Polícia Militar da Bahia em crise de segurança estão presentes em outros Estados.
Brasília passou a recear que a crise baiana ganhe contornos nacionais. Em parte, deve-se a esse temor a decisão de exibir na Bahia a musculatura federal da Força Nacional de Segurança e, sobretudo, do Exército.
A Anaspra (Associação Nacional dos Praças) programa para esta semana uma reunião de emergência. O objetivo do encontro foi insinuado em nota oficial veiculada nesta segunda (6), no site de uma entidade de Pernambuco.
Chama-se ACS-PE (Associação Pernambucana dos Cabos e Soldados Bombeiros Militares). Sob o título "alerta geral", o texto (disponível aqui) pede a PMs e bombeiros que fiquem "atentos", anuncia a convocação iminente de uma "assembléia geral" e anota no rodapé:
"Há uma possibilidade de movimento nacional, a qual deverá ser definida ainda esta semana em reunião extraordinária com todos os integrantes da Associação Nacional de Praças."
Pernambuco é um dos Estados mencionados nos relatórios lidos nos gabinetes do Planalto e nos ministérios da Justiça e da Defesa. Mencionam-se também, entre outros, Alagoas, Rio Grande do Norte, Acre, Rio de Janeiro e Espírito Santo.
No Rio, como que farejando o cheiro de queimando, o governador Sérgio Cabral (PMDB), adotou método diverso do colega baiano Jaques Wagner (PT). Decidiu antecipar um pedaço do reajuste que concedera no ano passado em 48 parcelas.
A coisa fora anunciada nas pegadas da greve de bombeiros que produzira cenas de insubordinação análogas às que ocorrem agora na Bahia. A poucos dias do Carnaval, Cabral apressou-se em veicular uma nota no site do governo estadual.
O texto (leia aqui) reproduz declarações do governador. Cabral presta contas. Afirma que policiais e bombeiros do Estado terão um total de 107% de aumento salarial, somando-se os reajustes dados pelo governo desde 2007 até os que já estão garantidos para 2012 e 2013.
Na origem, a encrenca que envenena os quartéis de vários Estados traz as digitais do governo federal. Foram impressas numa negociação feita no Congresso durante a gestão Lula. Envolveu uma proposta de emenda constitucional, a PEC-300.
Apresentada em 2008, a proposta previa a criação de um piso salarial para todos os policiais militares e bombeiros do país. Passariam a receber contracheques iguais aos da PM do Distrito Federal, ao redor dos R$ 4 mil. Um salto, considerando-se que a média nacional não chega a R$ 2 mil.
A mesma proposta previa a constituição de um fundo de R$ 12 bilhões para que os Estados implementassem o aumento. Estipulava, de resto, que a União complementaria os salários nos Estados que não tivessem caixa para bancar a novidade.
Ao descer à calculadora, o governo estimou em cerca de R$ 40 bilhões a despesa que o Tesouro teria caso o projeto virasse lei. Decidiu-se empurrar o projeto com a barriga. De repente, no ano eleitoral de 2010, os ventos viraram.
Submetidos a uma pressão de entidades classistas, deputados governistas e oposicionistas passaram a pressionar pela votação da emenda. Às voltas com o esforço para fazer de Dilma Rousseff sua sucessora, Lula autorizou a abertura de negociações.
Articula daqui, discute dali chegou-se a uma fórmula intermediária. Retirou-se da emenda o valor do piso. Considerou-se que seria absurdo anotar o salário de uma categoria no texto Constitucional. Suprimiu-se do projeto também o fundo e a previsão de complementação da União.
Acertou-se que esses detalhes seriam definidos num projeto de lei, que o governo enviaria ao Congresso 180 dias depois da aprovação da emenda constitucional. Feito o acordo, a proposta escalou o plenário da Câmara.
Em 7 de julho de 2010, a três meses da eleição em que Dilma prevaleceu sobre o tucano José Serra, a PEC-300 foi aprovada por unanimidade na Câmara. O painel eletrônico registrou 349 votos a favor. Nenhum contra.
Como toda mudança constitucional, a votação precisa ser confirmada num segundo turno. Algo que, decorridos quase dois anos, jamais foi feito. O governo voltou a acionar a barriga. Passada a sucessão presidencial, o Planalto não demonstra a mais remota intenção de concluir a votação.
O presidente petista da Câmara, Marco Maia (RS), constituiu no ano passado uma comissão especial composta por 25 deputados. Alegou que era necessário envolver os governadores no debate sobre a emenda que seus pares aprovaram por unanimidade.
Para assegurar que a protelação fosse duradoura, Marco Maia incumbiu a comissão de se debruçar não apenas sobre a PEC-300, mas sobre vários projetos relacionados à segurança pública. Propostas que dormitavam nos escaninhos do Legislativo.
Prestes a anunciar um corte no Orçamento que deve chegar à casa dos R$ 60 bilhões, o governo não se vê em condições de concluir a apreciação da emenda. Na semana passada, em reunião com lideranças do PT e do PMDB, a ministra Ideli Sanvatti, coordenadora política de Dilma, foi informada de que a oposição trama ressuscitar a PEC-300.
Henrique Eduardo Alves (RN), líder do PMDB na Câmara repassou informação que recebera do colega ACM Neto (BA). Segundo Henrique, o líder do DEM avisara que sua legenda planeja inclusive recorrer à obstrução das votações para forçar a realização do segundo turno da PEC fardada.
É contra esse pano de fundo que cresce a revolta das corporações policiais. No caso da Bahia, uma revolta a mão armada. Depois de adoçar os lábios de PMs e bombeiros na negociação de 2010, o governo adiciona ao discurso da falta de caixa o argumento de que a atmosfera de motim descredencia o movimento.
No Congresso, a reação ao retorno da barriga não ficará restrita ao bloco oposicionista. O pseudogovernista Anthony Garotinho (PR-RJ), que já governou o Rio e não resolveu o problema salarial dos quatéis, planeja mobilizar o que chama de "bancada da polícia".
No ano passado, quando Antonio Palocci encontrava-se pendurado nas manchetes em posição constrangedora, Garotinho convertera o patrimônio amealhado pelo petista-consultor como argumento de chantagem.
"O momento político é esse", discursara o aliado tóxico numa reunião com colegas favoráveis à PEC-300. Temos uma pedra preciosa, um diamante que custa R$ 20 milhões, que se chama Palocci. A bancada evangélica pressionou e o governo retirou o kit gay. Vamos ver agora quem é da bancada da polícia. Ou vota, ou o Palocci vem aqui."
A "pedra preciosa" de Garotinho já não está na Casa Civil de Dilma. Mas, a julgar pelas reuniões que vem mantendo com policiais e bombeiros do Rio, Garotinho não parece disposto a desativar o garimpo.
Sobre o autor
Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.
Sobre o blog
A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.