Se o Deivid perdeu aquele gol, tudo é permitido
Josias de Souza
23/02/2012 06h06
O passe de Léo Moura foi primoroso. A bola chegou até Deivid na bandeja, com talheres de prata e guardanapo de linho egípcio. Não havia adversários à frente. O goleiro estava batido. Ninguém pra atrapalhar. A trave ali, convidativa, escancarada. Um sopro faria a bola rolar, docemente, até o fundo da rede.
Criou-se para Deivid um dilema hamletiano: ou faço o gol ou faço o gol. E ele optou pela única alternativa não disponível. O torcedor vascaíno pôs-se a urrar o nome do ex-rival, em feérica louvação coletiva.
O pedaço flamenguista das arquibancadas deu razão a Dostoiévski: se Deus não existe, tudo é permitido. Se um jogador perde um gol como aquele, extinguem-se todos os valores morais sobre a Terra. Podemos invadir os asilos para esganar os velhinhos.
Impossível ler o noticiário esportivo sem tropeçar no nome de Deivid. O Vasco prevaleceu sobre o Flamengo por 2 a 1. Três gols na partida. E não se fala senão no gol que foi jogado pela janela. Todo mundo se pergunta: Por quê?
Eis a resposta: a bola não aceita desaforo. E Deivid a ofendeu. O gol pareceu-lhe tão feito que ele, como que idealizando o vôo dos companheiros sobre seus ombros, esqueceu de dar tratos à bola. E ela, caprichosa e birrenta, preferiu beijar a trave a balançar o véu da noiva.
Muita gente deve ter cruzado a madrugada sentado no meio-fio, chorando. Quanto a Deivid, há de ter sonhado com um exílio de Gonçalves Dias. Durante muito tempo, os urubus que aqui gorjeiam irão despejar sobre seus ouvidos grunhidos de mau agouro.
– Atualização feita às 18h37 desta quinta (23): Deivid expiou suas culpas numa entrevista coletiva. Assumiu integral responsabilidade pelo infortúnio do Flamengo. Ao explicar o inexplicável, declarou: "Fui tão convicto que bati para comemorar. Até meu filho, de cinco anos, faria [o gol]. Ele já entende. Vou tentar recuperar e dar a volta por cima." Aqui, os detalhes.
Sobre o autor
Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.
Sobre o blog
A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.