Ministério Público quer retirar Dicionário Houaiss das estantes por definir o cigano como ‘velhaco’
Josias de Souza
27/02/2012 19h27
Por quê? Segundo o procurador, o dicionário atribui ao vocábulo "cigano" significados que, por pejorativos, difundem o preconceito e potencializam o racismo contra cidadãos de origem cigana. Uma comunidade que, segundo o procurador, soma 600 mil pessoas no Brasil.
No Houaiss, o verbete cigano inclui acepções como: "Aquele que trapaceia; velhaco, burlador". Ou ainda: "aquele que faz barganha, que é apegado ao dinheiro, agiota, sovina". Zelosa, a publicação anota que esses significados são usados em sentido "pejorativo". Para o procurador, não resolve.
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Ouça-se Cléber Neves, o autor da ação: "Ao se ler em um dicionário, por sinal extremamente bem conceituado, que a nomenclatura cigano significa aquele que trapaceia, velhaco, entre outras coisas do gênero, ainda que se deixe expresso que é uma linguagem pejorativa, […] fica claro o caráter discriminatório assumido pela publicação."
Para o procurador, o dicionário afronta a Constituição ao "semear […] a prática da intolerância, especificamente da intolerância étnica". Viola também a lei que tipifica o crime de racismo ao "albergar posturas preconceituosas e discriminatórias."
Por isso, além de retirar o Houaiss das estantes, Cléber Neves deseja impor à editora e ao instituto responsáveis pelo dicionário o pagamento de indenização de R$ 200 mil por "dano moral coletivo" à comunidade dos ciganos.
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A ação judicial tem origem numa investigação aberta há três anos. O escritório da Procuradoria em Uberlândia recebeu, em 2009, representação de um brasileiro de origem cigana. Queixava-se da discriminação e do preconceito difundido contra sua etnia pelos dicionários de língua portuguesa.
O procurador Cléber Neves expediu ofícios a diversas editoras. Munido das respostas, deu razão ao cigano queixoso. E recomendou às editoras que fossem varridas dos dicionários as expressões tidas por preconceituosas. Duas delas –a Editora Globo e a Melhoramentos— atenderam ao pedido.
A Editora Objetiva recusou-se a fazer o mesmo. Alegou que é mera detentora dos direitos de publicação do dicionário. O conteúdo é de resposabilidade do Instituto Houaiss. Em novos ofícios, o procurador insistiu. Editora e instituto deram de ombros.
"Não tivemos outra saída a não ser ingressar em juízo para garantir o respeito às leis e à própria Constituição, que proíbem não só a prática, mas o próprio ato de induzir à discriminação ou ao preconceito étnico", diz Cléber Neves.
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O signatário do blog está em pânico. Para preencher seus lapsos de conhecimento, o repórter socorre-se de um velho Caudas Aulete. Tem cinco volumes. A versão original é da Editora Pinto Basto e Cia. Ltda., de Portugal.
Os cinco tomos foram impressos no Brasil, no ano da graça de 1964, pela Editora Delta S/A.. A definição de "cigano"consta da página 796 do primeiro tomo. Entre as várias acepções, anota: "Indivíduo que transaciona em animais, mas sempre de má fé. Astuto, velhaco, trapaceiro. Esperto, ladino."
Ao tomar conhecimento da ação do doutor Cléber Neves, o repórter passou a recear que a polícia lhe invada o escritório a qualquer momento, para recolher da estante seu velho Caldas Aulete. Um amigo de tantas horas, agora alcançado pela pecha de politicamente incorreto. Pior: o pobre Caldas, já morto e enterrado, descobre-se um insuspeitado criminoso.
Sobre o autor
Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.
Sobre o blog
A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.