Saiba por que o Cachoeira desaguou na CPI da Unanimidade, provocando o tsunami de cinismo
Josias de Souza
11/04/2012 06h05
Quando um grupo de congressistas consegue abrir uma CPI, você sabe que está diante de uma roda de cínicos. Quando a CPI nasce de uma unanimidade assim, tão assustadoramente densa, você percebe que está às voltas com uma crise semântica. Tudo perdeu o significado.
O que está em jogo nos desdobramentos do caso do proto-bicheiro Carlinhos Cachoeira é a instalação de uma 'CPI do Cinismo'. Ela decerto receberá outro nome. Mas é essa a matéria prima de que está sendo feita.
Experimente perguntar aos seus botões: se o Congresso é o mesmo, se o escândalo traz as mesmas delinquências de sempre, se o governo é o mesmo, o que mudou para que o descaso usual virasse essa fúria investigativa?
A explicação para o súbito fim do pouco-caso está no fato de que Cachoeira revelou-se demônio conveniente. Um demônio que, por suprapartidário, iguala os partidos em perversão, eximindo-os de todo tipo de exame. A começar do auto-exame.
Se quisesse, o governo poderia apagar o fogo de CPI que Carlinhos Cachoeira ateou no Legislativo. Em viagem aos EUA, Dilma Rousseff foi consultada pelo telefone. Mandou que seus operadores deixassem a coisa rolar.
Ideli Salvatti, a coordenadora política da Presidência, informou aos líderes do condomínio que Dilma não se envolveria na encrenca. Eduardo Braga, líder do governo no Senado, foi mais explícito: o governo apoia a CPI, disse a um grupo de senadores.
Por que Dilma joga lenha na fogueira? A resposta está nos índices das pesquisas de opinião pública. Há 40 dias, o Senado desfeiteara Dilma rejeitando-lhe o nome da agência reguladora dos transportes. Ela dera o troco. E a Câmara fizera doce para aprovar a Lei da Copa, condicionando-a ao agendamento da batalha do Código Florestal. A popularidade de Dilma foi às nuvens. E ela se deu conta de que a ruína do Legislativo faz-lhe bem à alma.
Enquanto os partidos estiverem jogando lama uns nos outros, Dilma chegará cedo ao Planalto, cuidará do expediente e irá para o Alvorada fazer pose de zeladora do PIB e de mantenedora da higidez da economia diante do espelho. Verá potencializar-se a lua de mel que vive com seus travesseiros.
Desde que chegou ao poder, em 2003, o PT atravessa uma metamorfose às avessas. De borboleta, tornou-se casulo. No novo papel, notabilizou-se como empata-CPIs. Por mal dos pecados, não conseguiu abafar a dos Correios. O escândalo era demasiado escandaloso. Deu no mensalão.
O ex-PT adaptou-se às más companhias e passsou a tolerar os seus corruptos, tratando-os com indulgência. Há sete anos o petismo procura um demônio para lhe devolver a culpa e a custódia dos seus crimes. De repente, surge o Cachoeira. Demóstenes Torres, o 'demo' que posava de vestal, foi pilhado em diálogos vadios. Melhor: o calcanhar do tucano Marconi Perillo ficou exposto.
Logo o Perillo, personagem que desafiou o lero-lero do "não sabia" ao trombetear, em 2005, a informação de que alertara o ex-soberano sobre a existência do mensalão. Liberado por Dilma e estimulado por Lula, o ex-PT marcha sobre o governo de Goiás com sede de vingança.
A hora não poderia ser mais propícia. O STF prepara-se para julgar os mensaleiros. Para completar, os grampos da Polícia Federal insinuam uma parceria do aparato de bisbilhotagem do bicheiro com jornalistas. O suficiente para propiciar a construção de uma versão marota: a tese segundo a qual Cachoeira ajudou a armar os flagrantes que deixaram mal o governo Lula. Entre eles a cena do funcionário dos Correios recebendo propina.
A esperteza não apaga os fatos. O funcionário existiu. Estava a serviço do PTB. Recebeu dinheiro por baixo da mesa. Emboscado, Roberto Jefferson levou às manchetes o "carequinha". Seguiu-se o Delúbio. Por mais que se esforce, o petismo não fará da tempestade uma bonança. Reputação é como virgindade. Uma vez violada, violada está. Mas quem se importa? No momento, interessa provar que há mais virgens no bordel.
Despejado numa CPI, o Cachoeira vai engolfar nacos do PT. Pelo menos um deputado federal goiano molhou a mão nas ca$catas. O governador Agnelo Queiroz e Cia. encontram-se com água pelo nariz. Paciência. Não se pode ter tudo na vida. Para afogar os antagonistas, igualando-os em perversão, o preço parece módico.
Levada pela correnteza, não restou à oposição senão nadar no ritmo das águas. As transgressões de Demóstenes como que intimaram o DEM a aderir à CPI. Apesar de Perillo, o PSDB apressou-se em imitar o gesto. Não ficaria bem ser levado às manchetes como um sub-DEM. Resta torcer para que vozes de autoridades do governo soem nos grampos ainda ocultos.
De resto, a geoplítica do escândalo, por ora concentrado no eixo Goiás-Brasília, propiciou a unanimidade. Há no Congresso mais de uma centena de candidatos a prefeito. É gente que não parece disposta a carregar para os palanques montados em outros pedaços do mapa as delinquências do Centro-Oeste.
Nesta terça (10), realizaram-se no Legislativo duas reuniões sintomáticas. Numa, Marco Maia discutiu a CPI com os líderes da Câmara. Noutra, José Sarney tratou do mesmo tema com os líderes do Senado. Em ambas, formou-se um inacreditável consenso pró-CPI. Coisa nunca antes vista na história desse país.
O Congresso pode mudar? Dificilmente. A mudança pode ser radical? Impossível. Então, pergunte de novo aos seus botões se algum dia eles imaginaram que Brasília estaria fazendo esse coro em favor de uma investigação séria, profunda, e generalizada. Você talvez conclua que não, bobagem, isso jamais aconteceria.
Para não dizer que Legislativo e Executivo renderam-se ao cinismo deve-se deduzir que os Poderes da República são vítimas da confusão semântica. Simulação agora é sinônimo de investigação. É tão bem-sucedido o sistema de conveniências que domina os partidos que a anunciada CPI, em vez de animar, intriga. Por que a rotina passaria a ser tratada como escandalosa?
Claro, às vezes a pantomima descamba para o insondável. Há gente séria no meio da encenação. Ninguém pode garantir que, puxando-se um fio de meada aqui, arrancado-se um véu acolá, a autodefesa do sistema não desmorone. Mas o hábito de descrer, já tão disseminado entre os brasileiros, não recomenda o otimismo. Entre os cínicos e os revolucionários da semântica, o papel reservado a você, observador atento, é o de bobo.
– Ilustração via Orlandeli.
Sobre o autor
Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.
Sobre o blog
A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.