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Saiba por que a CPI pode assar mais uma pizza

Josias de Souza

03/05/2012 06h20

Convocada sob estrondosa unanimidade, apoiada por governistas e oposicionistas, a CPI do Cachoeira expôs seus calcanhares de vidro já na primeira sessão deliberativa. Aprovou-se um plano de trabalho que, seguido ao pé da letra, pode resultar numa pantomima que não cobrirá nem os fatos e indícios já esmiuçados nos inquéritos feitos pela Polícia Federal. Vão abaixo, em seis tópicos, os lances que sinalizam a preparação do forno:

1. A Delta: Dono da empreiteira pilhada em negócios ilícitos com a quadrilha de Carlinhos Cachoeira, Fernando Cavendish foi solenemente ignorado no plano de trabalho apresentado pelo relator Odair Cunha (PT-MG). A exclusão do empreiteiro do rol inaugural de depoentes é inexplicável, inacreditável e inaceitável.

É inexplicável porque o nome de Cavendish consta da Operação Monte Carlo, um dos inquéritos que motivaram a instalação da CPI. Não bastassem as menções, a PF informa que a Delta despejou R$ 39 milhões nas caixas registradoras de empresas de fachada da quadrilha. Suspeita-se que a verba tenha irrigado campanhas eleitorais. Não é dinheiro de cafezinho. A suposição de que os cifrões saíram das arcas da Delta sem o conhecimento do seu controlador é algo que não faz nexo.

O desinteresse por Cavendish é inacreditável porque a voz dele soou numa gravação feita às escondidas por dois ex-sócios. Considerando-se o conteúdo, essa fita deveria atear em qualquer congressista um desejo irrefreável de ouvir o empreiteiro, não o contrário. Cavendish disse:

"Se eu botar R$ 30 milhões na mão de políticos, eu sou convidado pra coisa pra caralho! Pode ter certeza disso, te garanto. Se eu botasse dez pau que seja na mão de nêgo… Dez pau! Ah… Nem precisava de muito dinheiro não, mas eu ia ganhar negócio. Ôooo…"

Noutro trecho, o dono da Delta declarou: "Estou sendo muito sincero com vocês: R$ 6 milhões aqui, eu ia ser convidado. Ô, senador fulano de tal, eu tenho cinco convites aqui. Toma, tá aqui ó. Pá! Se convidar, eu boto o dinheiro na tua mão."

De resto, a sumiço de Cavendish do plano de trabalho da CPI é inaceitável porque a Delta, sexta maior construtora do país, ocupa o topo do ranking das obras do PAC, o bilionário programa de obras do governo federal. Investigar a empresa em todos os seus desvãos (da sala da diretoria à portaria) não é –ou não deveria ser— algo opcional. Tornou-se um imperativo ético.

2. A geopolítica: No plano de trabalho redigido por Odair Cunha e aprovado pela CPI, anotou-se que a investigação vai abarcar a quadrilha e suas ramificações. Ao citar o tentáculo privado da organização, o relator escreveu que serão perscrutadas as relações da turma de Cachoeira "com setores empresariais e agentes de mercado, inclusive com a diretoria da Delta na região Centro-Oeste".

Ora, Delta Centro-Oeste é coisa inexistente. Afora os contratos beliscados na Esplanada dos Ministérios, a empreiteira toca obras em 23 Estados e no Distrito Federal. Imaginar-se que a empresa opera à magem da lei apenas na região central do país é algo que, de novo, não orna com a lógica. A Contraladoria-Geral da União aponta irregularidades em canteiros administrados pela Delta desde 2008.

A despeito disso, Dilma Rousseff e sua equipe de controladores só acordaram para a encrenca depois que a Delta virou sinônimo de escândalo. Só há 15 dias, por ordem da presidente, o ministro Jorge Hage, chefe da CGU, anunciou a abertura de procedimento administrativo que deve levar à declaração da inidoneidade da empresa. Por que demorou tanto?, os membros da CPI deveriam estar perguntando aos seus botões.

Embora espremido por vários de seus pares, o relator Odair bateu o pé. Recusou-se a excluir do seu plano de ação a limitadora referência ao Centro-Oeste. Trata-se, segundo ele, de mero "ponto de partida". Alega que o vocábulo "inclusive" autoriza a eventual ampliação do alvo. Se é assim, por que diabos não suprimiu do texto, em nome da objetividade, o dique regional? O desejo do PT de resguardar o governo federal e seu PAC explica a obsessão.

3. Os governadores: As operações da PF levaram à grelha dois executivos estaduais: Marconi Perillo (PSDB), de Goiás; e Agnelo Queiroz (PT), do Distrito Federal. A divulgação do audiovisual (vídeos e fotos) que desnudou a intimidade de Fernando Cavendish com o governador do Rio adicionou Sérgio Cabral (PMDB) na coluna de devedores de boas explicações. O que fez a CPI? Por ora, nada.

Para não dizerem que não falou de espinhos, o relator Odair programou para 12 de junho uma "audiência pública para debater as relações do sr. Carlos Augusto de Almeida Ramos com governos estaduais." Governos? Sim, isso mesmo. Nem sinal dos nomes do tucano Perillo e do petê Agnelo. Nada do pemedebê Cabral. Signatário de requerimentos de convocação dos três, o tucanato silenciou. O petismo ecoou o silêncio. Ficou no ar um cheiro de arranjo, um odor de deixa-como-tá-pra-ver-como-é-que-fica.

4. O procurador-geral: Nenhum nome foi mais mencionado na reunião da CPI do que o de Roberto Gurgel. O senador Fernando Collor (PTB-AL) insistiu na tese de que o chefe do Ministério Público Federal precisa ser convocado. O deputado Cândido Vaccarezza (PT-SP) deu-lhe razão: "O procurador ter sentado nestas investigações por três, quatro anos não é correto. Ele deve explicações à sociedade brasileira."

De fato, Gurgel não está bem posto em cena. Recebera em 2009 o resultado da Operação Vegas. Nesse inquérito, a voz de Demóstenes Torres já era ouvida nos grampos da PF em diálogos tóxicos com Carlinhos Cachoeira. Ainda assim, o papelório e os CDs foram tratados na Procuradoria a golpes de gaveta por três arrastados anos.

Convidado a comparecer à CPI, Gurgel invocou uma limitação funcional. Alega que, depondo como testemunha, ficaria impedido de atuar nos inquéritos abertos agora, a seu pedido, no STF. Verdade. Ex-procurador da República, o senador Pedro Taques (PDT-MT) citou na CPI as leis e os artigos que dão suporte à argumentação de Gurgel. Porém, a convocação do procurador não é a única forma de forçá-lo a explicar-se.

A CPI tem poderes para, por exemplo, exigir de Gurgel uma justificativa escrita. Ele diz que o inquérito de 2009 não continha indícios que justificassem sua ação. Se é assim, por que não arquivou? Sustenta que optou "por sobrestar o caso, como estratégia para evitar que fossem reveladas outras investigações relativas a pessoas não detentoras de prerrogativa de foro [investigados sem mandato], inviabilizando seu prosseguimento, que viria a ser formalizado na Operação Monte Carlo."

Ora, a Monte Carlo nasceu de uma iniciativa da PF, não de uma ordem de Gurgel. Pela lei, o procurador-geral pode, em benefício da investigação, aguardar por um desfecho mais conclusivo. Mas precisaria ter manifestado a intenção num ofício interno. Não consta que Gurgel tenha assinado algo parecido. Quer dizer: faltam explicações. E a CPI, se quisesse, teria como buscá-las sem afrontar as prerrogativas funcionais do procurador-geral.

5. Os congressistas: O plano de trabalho aprovado nesta quarta (2) prevê que a CPI jogará luzes sobre as ramificações de Carlinhos Cachoeira no Poder Legislativo. Agendou-se para 31 de maio a inquirição de Demóstenes Torres. Será ouvido depois que já tiverem passado pelo banco da CPI o próprio Cachoeira e seus operadores sem mandato. Beleza. E quanto aos deputados federais cujas biografias foram umedecidas no Cachoeiragate? Nada.

Afora o pedido de abertura de inquérito contra Demóstenes, já afogado, a Procuradoria da República requereu ao STF a instauração de processos contra três deputados: Carlos Leréia (PSDB-GO), Sandes Júnior (PP-GO) e Stepan Nercerssian (PPS-RJ). Encontram-se com água pelo nariz. Mas a CPI, curiosamente, não parece interessada em desatar os nós monetários que os unem a Cachoeira. Por quê? Qualquer criança de cinco anos é capaz de responder.

6. O calendário: O relator Odair Cunha anotou no item três do seu plano de ação: "O prazo para conclusão dos trabalhos da CPI é de 180 dias, com término em 4 de novembro de 2012." Os regimentos da Câmara, do Senado e do Congresso prevêem que comissões parlamentares de inquérito são passíveis de prorrogação.

Considerando-se as dimensões do aguaceiro, seria lícito supor que a nova CPI cogitasse a hipótese de esticar o seu calendário. Com o assentimento de seus pares, o relator prefere não considerar, nem como hipótese, a ideia de uma prorrogação. Na semana passada, logo depois de ser acomodado na cadeira de relator, Odair Cunha dissera, em timbre peremptório:

"Nós temos que analisar o que realmente existir de provas, de indícios. E, a partir dessas provas ou indícios, produzir uma investigação que pode atingir A ou B. Essa é uma questão que nós não temos controle. […] Produziremos uma investigação doa a quem doer."

Considerando-se o resultado da sessão inaugural, Odair, os 65% de governistas da CPI e até um pedaço da bancada oposicionista parecem agora mais preocupados em controlar "o que nós não temos controle",  escolher o A e o B que "uma investigação pode atingir" e administrar a cota de sofrimento de cada um. Se doer, que não doa tanto. Encrencas assim, tão vastas e multipartidárias, são um convite à construção dos fornos onde são assados os grandes acordos. Resta saber se o imponderável vai permitir.

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Sobre o autor

Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.

Sobre o blog

A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.


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