Antes de deixar o caso Cachoeira, juiz defendeu a legalidade dos grampos sob risco de anulação
Josias de Souza
18/06/2012 05h51
Datado de 14 de maio, o documento foi redigido em resposta a um habeas corpus no qual a banca de Márcio Thomaz Bastos, advogado de Cachoeira, questiona a legalidade dos grampos da Monte Carlo. Relator do recurso, o desembargador Tourinho Neto, do TRF-1 (Tribunal Regional Federal de Brasília), ignorou a peça do juiz, endossou a petição da defesa do contraventor e votou pela anulação das provas, tachando-as de "ilegais".
Conforme já noticiado aqui, Moreira Lima deixou o caso Cachoeira. A partir desta segunda-feira (18), ele passa a oficiar noutra jurisdição. Foi removido para a 12a Vara da Seção Judiciária de Goiás, "com prejuízo" de suas atribuições anteriores. A transferência foi formalizada em ato assinado pelo presidente do TRF-1, desembargador Mário Cesar Ribeiro, na última quinta-feira (14), exatamente um mês depois do ofício do juiz sobre as escutas.
O voto de Tourinho Neto foi lido numa sessão da 3a turma do TRF-1. Deu-se na terça-feira (12) da semana passada, dois dias antes da remoção do juiz Moreira Lima. A turma é composta de três desembargadores. Um deles, Cândido Ribeiro, pediu vista do processo, adiando a decisão. O julgamento que pode mandar os grampos ao lixo, inviabilizando a ação penal, deve ser retomado nesta semana.
Na petição em que reivindicam a decretação da nulidade das provas e a consequente libertação de Cachoeira, preso desde 29 de fevereiro, Thomaz Bastos e sua equipe alegam que as escutas telefônicas foram autorizadas com base apenas em denúncias anônimas, o que seria ilegal. No seu ofício, o juiz Moreira Lima refutou a argumentação. Teve o cuidado de mencionar passagens do inquérito, indicando as páginas em que foram registradas no processo.
Invocando a jurisprudência das cortes superiores, o magistrado anotou que as denúncias apócrifas não foram utilizadas senão como ponto de partida para "embasar procedimentos investigatórios preliminares em busca de indícios que corroborem as informações da fonte anônima."
Os advogados de Cachoeira sustentaram que "denúncias anônimas pifiamente verificadas" deram origem aos grampos. Moreira Lima absteve-se de comentar o "pifiamente". Considerou o vocábulo "por demais desrespeitoso com os agentes públicos que trabalharam na averiguação." Categórico, afirmou que "as denúncias anônimas foram, sim, verificadas." O magistrado cuidou de historiar o ocorrido.
Um denunciante anônimo enviou e-mail à Ouvidoria do Ministério Público do Estado de Goiás. Informava sobre o funcionamento de casas de jogos ilegais em Valparaíso e Águas Lindas, cidades goianas assentadas na fronteira com o Distrito Federal. Diante da "gravidade dos fatos narrados", a própria Promotoria de Goiás efetuou "diligências preliminares". Constatou que, de fato, a jogatina existia.
Acionada, a Polícia Federal mobilizou seus agentes. "Saíram a campo e identificaram 13 casas de jogos ilegais em funcionamento nas cidades de Valparaíso e Águas Lindas", informou Moreira Lima no ofício que o desembargador Tourinho Neto ignorou. "Tudo isso, repise-se, antes da interceptação telefônica", o magistrado fez questão de realçar.
Moreira Lima foi minucioso em seu texto. Segundo ele, a PF descobriu em suas incursões que a exploração do jogo ocorria sob proteção de quem deveria reprimir a atividade, a polícia de Goiás. Identificaram-se os proprietários das casas: José Olímpio Queiroga, Francisco Marcelo Queiroga e Raimundo Washington Queiroga.
Levantados os nomes, fez-se uma "investigação social". Consistiu no levantamento de informações disponíveis em bases de dados públicas. Verificou-se que pesavam contra os membros da família Queiroga "registros policiais pela prática de diversos crimes." A confirmação das suspeitas permitiu inclusive a expedição de mandados de prisão contra dois irmãos da linhagem dos Queiroga.
"Isso faz prova de que a autoridade policial não inventou o que escreveu na representação, e sim que houve investigação preliminar e esta foi realizada de maneira séria", voltou a afirmar o juiz Moreira Lima.
Mais: "A autoridade policial fez referência a investigação ocorrida em 2008, que resultou na apreensão de 340 máquinas caça-níqueis em Valparaíso." Mais ainda: "Destaco que a representação inicial da autoridade policial, de nove páginas, está calcada nos documentos […] que indicam a ocorrência de um sem número de fatos relacionados a jogos."
A certa altura, o juiz ironiza a tentativa do ex-ministro da Justiça Thomaz Bastos e de sua equipe de desqualificar as denúncias anônimas: "Não sei se os impetrantes entendem que não é qualquer pessoa que tem coragem de assinar seu nome em documento que denuncia uma organização criminosa que conta com suposto envolvimento de dezenas de policiais."
O magistrado acrescentou: "Sabidamente, os setores de inteligência, não só do Departamento de Polícia Federal, mas de todas as instituições policiais ao redor do mundo, trabalham com compartilhamento de informações, utilização de informantes, cruzamento de dados, pesquisas nos bancos de dados disponíveis, matérias jornalísticas, denúncias anônimas, entre outras fontes."
No inquérito da Monte Carlo, informou Moreira Lima a Tourinho Neto, "o Núcleo de Inteligência [da PF] nem precisou se valer de qualquer desses caminhos." Segundo o juiz, basta "reler os autos" para constatar que as investigações realizadas diretamente pela PF (antes da deflagração do grampos) lograram esquadrinhar o funcionamento das casas de bingo da quadrilha.
No habeas corpus que o desembargador Tourinho Neto acolheu, a defesa de Cachoeira também sustentou que as escutas telefônicas seriam ilegais porque foram usadas numa investigação que envolvia a prática de um crime reles: "uma simples contravenção." Moreira Lima, de novo, refutou o argumento.
O magistrado recordou que, de fato, a primeira ordem judicial para a realização de grampos, expedida numa fase em que o caso ainda se encontrava na Vara Estadual de Valparaíso, faz "referência à contravenção". Mas também cita o cometimento de delitos mais pesados: "Constam os crimes de corrupção ativa e passiva, formação de quadrilha e lavagem de dinheiro."
O juiz reconheceu que a peça do colega da 1ª Vara de Valparaíso "não é extensa, nem menciona trechos de obras clássicas e um sem número de precedentes jurisprudenciais." Porém, a decisão "contém o necessário." Relata "os fatos a serem apurados, a base legal e constitucional para interceptação telefônica, o porquê da competência do juízo, a existência de indícios suficientes de autoria e a adequação e necessidade da medida."
Nesse ponto, Moreira Lima invoca uma decisão do STF. Ao julgar um caso análogo, o Supremo consagrou o entendimento segundo o qual "só se considera nula a decisão [judicial] desprovida de fundamentação, não aquela que, embora concisa, contenha motivação."
Tourinho Neto também endossou o argumento da defesa de que a investigação deveria ter sido feita sem recorrer à medida extrema da quebra dos sigilos telefônicos. Fez ouvidos moucos para a argumentação de Moreira Lima.
O juiz argumentou em seu ofício que o trabalho da PF esbarrou nos policiais goianos que faziam a segurança das casas de jogo da quadrilha. Afora os riscos a que seriam expostos numa investigação convencional, os agentes federias não puderam realizar "operações ostensivas". Ficou evidenciado que as escutas, mais do que necessárias, eram indispensáveis para o avanço da apuração.
Invocando o artigo 5º da Lei 9.296/1996, a defesa alegou –e Tourinho Neto corroborou— que a PF não poderia ter escutado Cachoeira e seu bando por mais de 30 dias. E Moreira Lima: a lei prevê "o prazo máximo de 15 dias para a interceptação telefônica, renovável por mais 15." Mas "não há qualquer restrição ao número de prorrogações possíveis…" O juiz cita a doutrina e os precedentes dos tribunais superiores.
No pedaço final do habeas corpus subscrito por Thomaz Bastos, lê-se: "Mas o gran finale da série de ilegalidades ainda adviria: após cinco meses de interrupção, as interceptações foram subitamente retomadas em 26 de janeiro de 2012." Moreira Lima respondeu: "Sim, as interceptações telefônicas foram retomadas após cinco meses de interrupção. Mas os impetrantes 'esqueceram' de dizer por qual motivo isso ocorreu."
O motivo, segundo o magistrado, "consta nos autos." Os grampos foram interrompidos no início de agosto de 2011 "por cautela". Ao escutar os diálogos da quadrilha, a PF deparara-se com o envolvimento de políticos. Gente que dispõe de prerrogativa de foro e só pode ser investigada sob supervisão do STF.
Assim, a suspensão teve o "objetivo de conferir maior transparência e lisura ao procedimento." Moreira Lima escreveu: "Entendi que as interceptações telefônicas não poderiam prosseguir sem que fosse avaliada eventual conexão dos fatos apurados no curso da Operação Monte Carlo com aqueles captados nos diálogos travados com autoridades detentoras de foro por prerrogativa de função, a fim de que pudesse decidir se era ou não caso de declínio de competência."
Noutras palavras: o juiz precisava verificar se poderia continuar presidindo a investigação ou se teria de repassar todo o inquérito para a alçada do Supremo. A averiguação tomou tempo. Convidada a elaborar um relatório, a PF "levou meses" para concluir a tarefa, "tendo em vista os milhares de áudios que deveriam ser analisados novamente, inclusive abrangendo o período em que a Operação Monte Carlo tramitou perante a Justiça Estadual de Valparaíso."
Depois, também o Ministério Público Federal teve de opinar. "Necessário destacar que somente os autos da interceptação telefônica contavam, já a essa época, com 35 volumes", informou Moreira Lima. "Então, logicamente, é algo que não se estuda da noite para o dia." Concluída a análise, a investigação foi retomada. E, com ela, as escutas. Em 29 de fevereiro, a Operação Monte Carlo ganhou o asfalto, levando às manchetes Cachoeira e o esquema que envolveu outras 80 pessoas.
A partir desta segunda-feira, Moreira Lima e seu vigor argumentativo deixam de frequentar o caso. Resta agora saber se os dois desembargadores que ainda não votaram na 3a turma do TRF-1 serão sensíveis às derradeiras manifestações levadas pelo magistrado aos autos ou se vão seguir o voto de Tourinho Neto. Dessa decisão depende o futuro da Operação Monte Carlo no âmbito do Judiciário.
Sobre o autor
Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.
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