Denúncia da Procuradoria contra Renan aponta crimes que podem render até 23 anos de prisão
Josias de Souza
01/02/2013 08h06
Na denúncia que protocolou no STF há uma semana, o procurador-geral da República Roberto Gurgel acusa Renan Calheiros da prárica de três crimes: peculato, falsidade ideológica e uso de documentos falsos. Se condenado, o senador pode pegar até 23 anos de cadeia. Sem mencionar a multa, a perda do mandato e o enquadramento na Lei da Ficha Limpa.
Deve-se ao repórter Diego Escosteguy a revelação do teor do documento redigido pelo procurador-geral. O material impressiona pela contundência. Escorada em achados da Polícia Federal, a peça de Gurgel não deixa dúvidas: ao devolver a Renan Calheiros a poltrona à qual ele renunciara em 2007, o Senado guinda à presidência um candidato a réu. Abaixo, os detalhes da encrenca:
1. Papelório inidôneo: ao defender-se em 2007 da acusação de que um lobista de empreiteira bancara despesas da ex-amante com quem tivera uma filha, Renan entregou ao Senado notas frias e documentos falsos. Segundo Gurgel, restou comprovado que o senador não dispunha de renda suficiente para custear a pensão à jornalista Mônica Veloso. Para complicar, descobriu-se que Renan usou notas fiscais geladas também para desviar pelo menos R$ 44,8 mil em verbas do Senado.
2. Origem do inquérito: o ponto de partida da investigação foi a notícia de que o lobista Cláudio Gontijo, amigo de Renan e empregado da construtora Mendes Júnior, repassava R$ 16,5 mil por mês a Mônica Veloso, a mãe da filha que Renan teve fora do casamento. Na mesma ocasião, entre 2004 e 2006, a empreiteira recebeu R$ 13,2 milhões em emendas penduradas por Renan no Orçamento da União e destinadas a uma obra no Porto de Maceió. Chamado a se explicar no Conselho de Ética, Renan alegara que a pensão à ex-amante saíra do próprio bolso. Dinheiro proveniente de negócios com gado. A Procuradoria desmontou essa versão.
3. Peculato e falsidade: a alturas tantas, Gurgel anota em sua denúncia, sem rodeios: "Em síntese, apurou-se que Renan Calheiros não possuía recursos disponíveis para custear os pagamentos feitos a Mônica Veloso no período de janeiro de 2004 a dezembro de 2006, e que inseriu e fez inserir em documentos públicos e particulares informações diversas das que deveriam ser escritas sobre seus ganhos com atividade rural, com o fim de alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante, qual seja, sua capacidade financeira".
Prossegue o procurador-geral: "Além disso, o denunciado utilizou tais documentos ideologicamente falsos perante o Senado Federal para embasar sua defesa apresentada [ao Conselho de Ética]". Mais adiante: "Assim agindo, Renan Calheiros praticou os delitos previstos nos artigos 299 (falsidade ideológica) e 304 (uso de documento falso), ambos do Código Penal."
4. Recursos insuficientes: com autorização do STF, o Ministério Público Federal quebrou o sigilo bancário do senador. Submeteu os extratos a uma perícia da PF. No dizer do procurador, verificou-se que "os recursos indicados por Renan Calheiros como sacados em dinheiro não poderiam amparar os supostos pagamentos a Mônica Veloso no mesmo período, seja porque não foi mencionada a destinação a Mônica, seja porque os valores destinados ao denunciado não seriam suficientes para suportar os pagamentos".
5. Vaivém de cheques: Para espantar as dúvidas quanto à falsidade da alegação de Renan de que dispunha de saldo, a PF esquadrinhou suas contas bancárias e declarações de rendimentos. Descobriu coisas inusitadas. Por exemplo: Renan informara que, em 2009, utilizara 118 cheques para realizar os pagamentos da pensão à jornalista. Desse total, constatou a PF, 66 foram destinados a outras pessoas e empresas. Outros 39 tiveram o próprio Renan como beneficiário.
Gurgeu escreveu: "No verso de alguns destes cheques destinados ao próprio Renan, havia manuscritos que indicam o provável destino do dinheiro, tais como 'mão de obra reforma da casa', 'reforma Barra' e 'folha de pagamento', o que diminui ainda mais sua capacidade de pagamento".
6. Rebanho fantasioso: o pedaço da denúncia em que Gurgel dedica-se a desmontar as alegações bovinas de Renan também contém dados eloquentes. Por exemplo: as notas relativas aos supostos negócios feitos por Renan em 2006 registram a venda de 765 cabeças de gado. O diabo é que as guias de trânsito animal, exigidas nesse tipo de transação, informam que foram transportados 908 animais.
Pois bem. A PF cotejou datas de venda e quantidades de animais. O cruzamento revelou que os dados de venda e entrega de gado só batiam em relação a 220 animais. Mais: descobriu-se que algumas das guias de trânsito animal anexadas por Renan à sua defesa eram de outros vendedores de gado. As notas fiscais não têm selo de autenticidade, trazem campos em branco e apresentam rasuras.
Pior: Duas das empresas que supostamente teriam comprado gado de Renan não operavam no ramo. Apontado como feliz comprador de 45 cabeças de gado do senador, José Leodácio de Souza negou em depoimento que tenha celebrado qualquer tipo de transação com Renan. Algo que, segundo Gurgel, "confirma a falsidade ideológica dos documentos apresentados".
7. 'Espantosa lucratividade': os achados da PF revelaram que Renan é um pecuarista sui generis também na escrituração dos seus negócios. Passaram por suas terras 1.950 bois. E não há nos registros contábeis vestígio de despesas de custeio. Tomados pelos balanços, os bois, vacas e reses de Renan pastavam livremente, sem a vigilância de peões. Eram animais salubérrimos, já que tampouco foram encontrados gastos com veterinários.
"A ausência de registro de despesas de custeio […] implica resultado fictício da atividade rural, o que explica a espantosa 'lucratividade' obtida pelo denunciado entre 2002 e 2006", anotou o procurador-geral na denúncia. Os lucros mencionados por Renan eram, de fato, portentosos. Em 2002, 85%. Em 2006, 80%.
8. Vida espartana: detectaram-se furos também no patrimônio declarado por Renan à Receita Federal. Dando-se crédito aos dados lançados no Imposto de renda do senador, realçou Gurgel, ele mal arranjaria dinheiro para "sua subsistência e de sua família." Aos exemplos: em 2002, a família de Renan teria apenas R$ 2,3 mil mensais para viver. Em 2004, R$ 8,5 mil mensais.
9. Desvio no Senado: Investiga daqui, perscruta dali, a PF foi bater num malfeito praticado no gabinete de Renan. Parte da verba destinada ao custeio das despesas relacionadas ao exercício do mandato de Renan foi usada para pagar supostos "serviços" prestados por uma locadora de carros, a Costa Dourada. Chama-se Tito Uchôa o proprietário. Vem a ser primo de Renan. Mais que isso: é laranja do senador em emissoras de rádio e tevê.
A denúncia anota: "No curso deste inquérito, também ficou comprovado que, no período de janeiro a julho de 2005, Renan Calheiros desviou, em proveito próprio e alheio, recursos públicos do Senado Federal da chamada verba indenizatória, destinada ao pagamento de despesas relacionadas ao exercício do mandato parlamentar". Crime de peculato.
No total, Renan justificou com notas da Costa Dourada despesas de R$ 44,8 mil, em valores da época. Não há sinal da passagem desse dinheiro pelas contas da empresa. Gurgel escreveu: "Não há registro de pagamento e recebimento dos valores expressos nas referidas notas fiscais, o que demonstra que a prestação de serviços não ocorreu, […] servindo apenas para desviar os recursos da verba indenizatória paga pelo Senado Federal".
10. Empréstimos camaradas: Renan inclui a Costa Brava também em suas explicações de 2007. Alegou que parte do dinheiro que usara para cobrir a pensão à jornalista viera de empréstimos contraídos junto à empresa. Coisa de R$ 687 mil. Nada foi declarado ao fisco. E o dinheiro "não transitou pelas contas apresentadas" por Renan.
Outra curiosidade: Renan recebia da Costa Dourada mais dinheiro do que o lucro declarado pela empresa. No ano de 2005, por exemplo, o senador disse ter recebido R$ 99,3 mil em empréstimos da locadora do primo. No mesmo ano, a firma declarou um lucro R$ 71,4 mil. Outro detalhe inusitado: "[…] não houve registros de pagamentos ou amortizações parciais dos recursos".
Como se vê, os senadores poderão alegar qualquer coisa quando o retorno de Renan à presidência do Senado desembocar em crise. Só não poderão dizer que não sabiam o que estavam fazendo. Procurado, Renan não quis comentar o teor da denúncia de Gurgel. A peça do procurador-geral encontra-se sobre a mesa do ministro Ricardo Lewandowski, relator do processo no STF. Caberá a ele redigir o voto que guiará o julgamento do caso no plenário do tribunal. Não há prazo para que isso ocorra.
Sobre o autor
Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.
Sobre o blog
A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.