Ante o injustificável, Itamaraty aciona os joelhos
Josias de Souza
19/08/2013 06h17
Dilma Rousseff teve neste domingo uma bela oportunidade para demonstrar que fala sério quando diz estar indignada com a ciberbisbilhotagem dos Estados Unidos. Desperdiçou a chance ao endossar o teatro montado pelo Itamaraty para reagir à detenção arbitrária, no aeroporto de Londres, do brasileiro David Miranda, companheiro do jornalista americano Glenn Greenwald, com quem vive no Rio de Janeiro.
Procedente de Berlim, David voltava para o Brasil num voo com escala em Londres. Invocando uma lei anti-terrorismo, a Scotland Yard o reteve no solo por nove horas. Os policiais interrogaram-no. Nada sobre terror. Queriam saber detalhes sobre o trabalho de Greenwald, autor das notícias que iluminaram a espionagem cibernética americana a partir do papelório vazado por Edward Snowden.
A vassalagem londrina aos interesses americanos foi levada às fronteiras do paroxismo. Sem advogado, o companheiro de Greenwald teve confiscados o celular, o laptop, a câmera fotográfica, os cartões de memória, os DVDs e até alguns cartuchos de videogame. O episódio assemelhou-se em estupidez ao recente bloqueio dos céus da Europa para o avião do presidente boliviano Evo Morales. Com toda a espionagem, Washington suspeitou que Evo estivesse coroneando Snowden da Rússia para a Bolívia.
No caso de Evo, a solidariedade companheira manifestou-se com um atraso de quase 24 horas. Dilma condenou o inadmissível na rabeira dos colegas da Argentina, do Equador e da Venezuela. Na detenção de David, Dilma autorizou o Itamaraty reagir no mesmo dia. Acertando no timing, o governo pecou na forma. Reagiu por meio de nota.
O texto abre com uma boa síntese: "Um cidadão brasileiro foi retido e mantido incomunicável no aeroporto de Heathrow por período de 9 horas, em ação baseada na legislação britânica de combate ao terrorismo." Segue-se a adjetivação: "Trata-se de medida injustificável por envolver indivíduo contra quem não pesam quaisquer acusações que possam legitimar o uso de referida legislação."
A coisa caminhava bem. Até que sobreveio o arremate pífio: "O governo brasileiro espera que incidentes como o registrado hoje com o cidadão brasileiro não se repitam." No mês passado, quando Glenn Greenwald noticiou, em parceria com os repórteres Roberto Kaz e José Casado, as incursões da ciberespionagem americana no Brasil, Dilma fez pose de ofendida. Para que a revolta da doutra fizesse nexo, o Itamaraty teria, no mínimo, que convocar o embaixador britânico em Brasília para prestar meia dúzia de esclarecimentos.
Tomada pelo teor da nota, a diplomacia brasileira parece mais interessada em salvar a visita de Dilma aos Estados Unidos, em outubro. Beleza. Do jeito que a coisa vai, basta que a presidenta e as pessoas de sua comitiva passem por Washington agachadas para serem consideradas personalidades de grande altivez.
Sobre o autor
Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.
Sobre o blog
A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.