Dilma fez bem, Obama não deixou alternativas
Josias de Souza
17/09/2013 15h32
As grandes ofensas têm um efeito perverso. Se o ofendido não reage, um dia acaba merecendo. O adiamento da viagem de Estado que Dilma Rousseff faria aos EUA em 23 de outubro é um gesto grave, muito grave, gravíssimo. Mas ainda é menor do que a afronta que o provocou. Barack Obama não deixou alternativas à colega brasileira.
A visita de Dilma seria espetaculosa, com direito a baile de gala na Casa Branca. Depois que se soube do grampeamento das comunicações nacionais, incluindo as da própria presidente e as da Petrobras, se Dilma fosse trocar beijinhos com Obama e bailar nos salões de Washington, bastaria se conservar agachada para ser considerada uma mandatária de grande altivez.
A decisão de Dilma foi formalizada em nota. O texto realça: "O governo brasileiro tem presente a importância e a diversidade do relacionamento bilateral, fundado no respeito e na confiança mútua." Mais adiante, enfatiza: "As práticas ilegais de interceptação das comunicações e dados de cidadãos, empresas e membros do governo brasileiro constituem fato grave, atentatório à soberania nacional e aos direitos individuais, e incompatível com a convivência democrática entre países amigos."
Na sequência, informa: "Tendo em conta a proximidade da programada visita de Estado a Washington – e na ausência de tempestiva apuração do ocorrido, com as correspondentes explicações e o compromisso de cessar as atividades de interceptação – não estão dadas as condições para a realização da visita na data anteriormente acordada."
Fechando o texto, uma frase ponderada: "O governo brasileiro confia em que, uma vez resolvida a questão de maneira adequada, a visita de Estado ocorra no mais breve prazo possível, impulsionando a construção de nossa parceria estratégica a patamares ainda mais altos." Repare que Dilma não cancelou a viagem. O compromisso foi apenas adiado. A presidente passou a bola ao anfitrião. Providas as explicações e assumidos os compromissos, a visita de Estado pode ser remarcada.
Só uma alma ingênua acreditaria que a máquina de espionar dos EUA vai retirar os seus olhos do Brasil. Mas a diplomacia exige um mínimo de preservação das aparências. O gesto de Dilma, bem calculado, não se confunde com os tremeliques antiamericanos dos vizinhos venezuelanos e bolivianos. A resposta demorou quase três meses. A combinação da indignação com a inação já comprometia a seriedade da cena.
Primeiro, soube-se em julho que a NSA, a agência de segurança dos EUA, bisbilhota as comunicações nacionais. Convocado, o embaixador americano em Brasília disse que são perscrutados apenas os "metadados", não o conteúdo das comunicações.
De passagem por Brasília, o secretário de Estado dos EUA, John Kerry, falou aos repórteres depois de encontrar-se com Dilma. "Vamos continuar tendo esse diálogo para ter certeza de que seu governo entenda perfeitamente e esteja de acordo com o que precisamos fazer para garantir a segurança não apenas para norte-americanos, mas para brasileiros e pessoas no mundo."
Foi como se Kerry dissesse: em matéria de espionagem, a Casa Branca acha que tem uma missão no mundo. Ao Brasil não resta senão compreender que essa missão, de inspiração divina, é inquestionável.
Um mês depois, com o conhecimento de Washington, a polícia inglesa deteve por nove horas no aeroporto de Heathrow o brasileiro David Miranda, companheiro do jornalista americano que divulgou os documentos secretos vazados por Edward Snowden.
O ministro José Eduardo Cardozo (Justiça) foi a Washington. Reuniu-se com o vice-presidente americano Joe Biden. Numa conversa sobre espionagem, Cardoso sugeriu que, na perseguição a suspeitos de terrorismo e criminosos, os EUA deveriam requerer ao Judiciário brasileiro a interceptação das comunicações. Nem pensar, respondeu Biden.
Menos de 48 horas depois do retorno do doutor Cardozo a Brasília, veio à luz a notícia de que a própria Dilma e seus auxiliares foram alvos diretos da espionagem americana. Embora tivesse motivos, a presidente brasileira absteve-se de rodar a baiana em público. Encontraria Obama na Rússia, na reunião do G20. Combinaria com ele que, criadas as condições políticas, a viagem a Washington seria mantida.
Na semana passada, Dilma enviou a Washington o chanceler Luiz Alberto Figueiredo. Ele se encontrou com a assessora de Segurança Nacional Susan Rice. Não ouviu dela nada que se assemelhasse a um pedido de desculpas ou a um compromisso de restauração do respeito bilateral. Para complicar, a Casa Banca divulgou uma nota oca assinada por uma funcionária de terceira escalão, sub de Rice, que é sub de Obama.
No começo da noite desta segunda-feira (16), Obama tocou o telefone para Dilma. Conversaram por 20 minutos. Sobreveio a nota desta terça. De novo: o governo americano não deixou alternativas a Dilma. Os EUA espionam e não têm intenção de parar. O Brasil continuará sendo um bisbilhotado indefeso. Mas Dilma sinalizou que não aceita fazer papel de boba.
Na semana que vem, Dilma fará um pronunciamento na ONU, em Nova York. No quintal de Obama, ela falará contra a espionagem cibernética. A coreografia não chega a elevar sua estatura. Mas se não a executasse, Dilma talvez rebaixasse o pé direito do Brasil.
Sobre o autor
Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.
Sobre o blog
A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.