Siemens: inquérito da PF inclui tradução forjada
Josias de Souza
27/11/2013 04h37
Convertido em arena de embate político de petistas e tucanos, o inquérito da Polícia Federal sobre o cartel suspeito de fraudar licitações de metrô e trens de São Paulo inclui um documento forjado. Trata-se da cópia de uma carta anônima datada de junho de 2008. O PSDB acusa o PT de fraudar o papelório para embaralhar a má repercussão das primeiras prisões de condenados do mensalão.
Endereçada à Siemens na Alemanha, a carta denuncia ilegalidades praticadas pela Siemens no Brasil. Entre elas o pagamento de propinas a "funcionários de governo". O texto foi escrito originalmente em inglês. Na tradução para o português, enxertaram-se trechos nos quais os "funcionários" viraram "políticos" do PSDB.
A versão da carta em língua inglesa pode ser lida aqui. A pseudotradução para o português está disponível aqui. Os dois documentos trazem no alto o carimbo 'SR/DPF/SP'. Significa 'Superintendência Regional do Departamento de Polícia Federal em São Paulo.' Dentro do carimbo, grafadas manualmente, as páginas em que os documentos foram inseridos no inquérito: '1.390' e '1.395'.
Em vários trechos, a tradução não bate com o original. Por exemplo: num pedaço da peça em inglês lê-se que "[…] autoridades brasileiras estão investigando o envolvimento da Alstom em pagamento de propina a funcionários de governo em vários projetos no Brasil, entre eles a Linha G da CPTM (Metrô de São Paulo). […] Siemens também pagou propina nesse projeto".
Na versão traduzida, esse trecho ficou assim: "Durante muitos anos a Siemens vem subornando políticos (na sua maioria) do PSDB e diretores da CPTM, Metrô de São Paulo e Metrô de Brasília…"
Nesta quinta, a cúpula do PSDB convocou uma entrevista coletiva para acusar o ministro petista José Eduardo Cardozo (Justiça) de politizar a investigação do cartel paulista. O ministro fez isso, sustentam os tucanos, ao dar crédito a papéis apócrifos com acusações contra políticos do PSDB. O tucanato comparou o episódio ao caso dos "aloprados".
"Na nossa avaliação, da forma açodada com que agiu o ministro da Justiça e a sua omissão em determinados momentos desse episódio tiram dele, na nossa avaliação, as condições de conduzir essas investigações", disse o senador Aécio Neves, presidente do PSDB federal e virtual candidato da legenda ao Planalto.
Deve-se o pedido de afastamento de Cardozo à participação dele na remessa de um dossiê antitucanos à Polícia Federal. Conforme já noticiado aqui, o ministro assumiu ter repassado à PF documento produzido em abril de 2013 que acusa políticos do PSDB, DEM e PPS de envolvimento com o cartel férreo-metroviário de São Paulo.
Atribuído a Everton Rheinhemer, um ex-diretor da alemã Siemens, empresa que denunciou a existência do cartel ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica, o documento entregue à PF faz menção à carta mal traduzida de 2008, também encaminhada por Cardozo à polícia. Fica entendido que Everton Rheinhemer é o autor dos dois textos. Embora ele tenha negado a autoria em público, admitiu a paternidade aos investigadores.
Presentes à coletiva tucana, o chefe da Casa Civil da gestão Alckmin, Edson Aparecido, e o secretário de Energia de São Paulo, José Aníbal, acusaram o deputado estadual petista Simão Pedro de inserir "criminosamente" referências ao PSDB e aos seus membros nos papéis que Cardozo enviou à PF.
Aparecido figura num dos textos na incômoda posição de recebedor de propinas. De Aníbal diz-se que um "assessor" dele teria vínculos com um lobista a serviço da Siemens. Cardozo disse ter recebido do correligionário Simão os papeis que repassou à PF. Além de pedir o afastamento de Cardozo, o tucanato anunciou que representará contra ele na Comissão de Ética da Presidência da República e tentará convocá-lo para prestar esclarecimentos na Câmara e no Senado.
O ministro também convocou uma entrevista coletiva. Em resposta aos tucanos, disse que eles se queixam porque ainda não se deram conta de que o tempo do "engavetador" já passou —uma alusão a Geraldo Brindeiro, o ex-procurador-geral da República que, na Era FHC, recebeu o apelido de "engavetador-geral da República".
Cardozo disse que dará curso a toda acusação que lhe chegar às mãos: "Não importa quem seja, o ministro da Justiça tem o dever de solicitar a investigação, a análise da procedência, para que a polícia delibere o que fazer com o material. O ministro da Justiça que não o fizer, a meu ver, prevarica."
Presente à coletiva do ministro, o diretor-geral da PF, Leandro Daiello, negou a autoria da tradução fajuta constante do inquérito. Disse, de resto, que a polícia não detectou por enquanto o envolvimento de nenhum político com prerrogativa de foro no inquérito do cartel paulista. Mas acrescentou, entre enigmático e ameaçador: "Se algum personagem de foro privilegiado surgir com indícios de envolvimento, esse inquérito, aí sim, será remetido para o tribunal respectivo."
Sobre o autor
Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.
Sobre o blog
A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.