MPF processa Anac por violar regras de segurança no exame dos novos pilotos
Josias de Souza
09/02/2014 07h21
O Ministério Público Federal abriu uma ação judicial contra a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac). Acusa o órgão de violar normas de segurança na concessão de licenças para que novos pilotos operem voos comerciais no país. De acordo com a denúncia, os avaliadores destacados para aplicar os exames nem sempre possuem o domínio teórico e prático do tipo de avião a ser pilotado. Em português claro: "Não estão habilitados" para o exercício da função.
Chama-se Ailton Benedito de Souza o procurador da República que move a ação. Datada de 29 de janeiro, a petição foi protocolada na última quinta-feira (6) na 2ª Vara Federal de Goiânia. O interesse do procurador pelo tema foi despertado por uma revelação da repórter Tahiane Stochero. Anexada ao processo, a notícia é de 10 de dezembro de 2012. Conta que um inspector da Anac habilitado para operar aviões da Boeing foi destacado pela agência para avaliar dois novos pilotos de Airbus A-320 da empresa Avianca.
A avaliação dos pilotos ocorreria no centro de treinamentos da Airbus, em Miami, nos Estados Unidos. O inspetor indicado pela Anac recusou-se a realizar o serviço. Alegou que a prática de convocar profissionais sem o necessário conhecimento técnico para operar determinado equipamento coloca em risco a aviação. Em nome da segurança, preferiu refugar o trabalho.
Submetido à notícia, o procurador Ailton de Souza abriu um inquérito. Remeteu à Anac um pedido de explicações. No texto, o doutor perguntou se era verdade que a agência destacava examinadores para avaliar pilotos em aeronaves sobre as quais não têm domínio teórico e prático. Em sua resposta (ofício 98/2013/DIR-P), a Anac admitiu a prática. Alegou que o procedimento não traz riscos à segurança aeronáutica. E informou que não dispõe de pessoal com habilitação correspondente a todos os aviões em operação no Brasil.
A despeito dos indícios em contrário, a Anac sustentou na resposta à Procuradoria que todos os seus regulamentos seguem os padrões estabelecidos pela Organização da Aviação Civil Internacional (OACI). No exercício de suas atribuições, o procurador Ailton de Souza foi procurar. E achou evidências de que as alegações da Anac não fazem nexo.
A própria OACI recomenda que a avaliação dos pilotos seja feita por examinadores habilitados. Eles devem ter qualificação técnica no mínimo igual à dos pilotos que irão avaliar. Logo, concluiu o procurador, é necessário que "inspetores e examinadores detenham domínio teórico e prático sobre o particular tipo de aeronave" a ser pilotada.
O doutor Ailton de Souza debruçou-se também sobre as "recomendações de segurança de voo" editadas pelo Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Cenipa). Encontrou dois documentos que contradizem o lero-lero da Anac. Ambos foram elaborados em 2005.
Num, o Cenipa proibiu "os voos de "avaliação de perícia" de novos pilotos feitos por inspetores de aviação civil que não sejam habilitados no equipamento a ser checado e não tenham participado de cursos de reciclagem. Noutro, determinou à Anac que realizasse um programa de capacitação dos inspetores nas diversas aeronaves, de modo a dispor de pessoal qualificado para a realização segura dos voos de avaliação.
A Anac opera com duas categorias de avaliadores de pilotos: há os 'inspacs', inspetores de aviação civil, e os 'examinadores credenciados'. Os 'inspacs' são servidores públicos —71 civis e 56 militares, cedidos pela Aeronáutica. Os 'credenciados' são civis registrados na Anac pelas próprias companhias aéreas, cuja área de atuação é mais limitada. Avaliam, por exemplo, pilotos de táxi-aéreo.
Munido das informações colecionadas no inquérito, o procurador Ailton de Souza concluiu: a exigência de inquestionável domínio técnico dos avaliadores sobre o tipo de avião a ser pilotado pelos avaliados está presente tanto nas normas internacionais de aviação quanto nas recomendações de segurança expedidas pelo órgão que zela pela segurança dos voos no Brasil. Nas palavras do procurador, são regras necessárias "para evitar perdas de vidas e de material decorrentes de acidentes aeronáuticos."
O procurador realçou o óbvio num trecho da ação: "…deve existir correlação entre o objeto do exame e as respectivas qualificações e habilitações de examinandos e examinadores. Noutras palavras, os examinadores também devem, eles próprios, ter domínio teórico e prático pertinente à aeronave sob pilotagem do examinando. Incompreensível, pois, que um examinador que não tenha domínio, por exemplo, sobre um avião Airbus seja admitido pela Anac para conduzir exame de proficiência de pilotos nesse tipo de aeronave, sob argumento de que tenha domínio sobre um Boeing."
Portanto, anotou Ailton de Souza na ação protocolada na Justiça Federal: "…Confessadamente, a própria Anac admite a sua omissão ilícita em cumprir as mencionadas recomendações de segurança de voo editadas pelo Cenipa, concorrendo, assim, para a exposição a riscos de vidas, bens materiais dos envolvidos e usuários dos serviços aeronáuticos."
Para o procurador, é inaceitável a alegação da Anac de que não dispõe de pessoal com qualificação específica para cada tipo de aeronave. Sobretudo porque as recomendações do Cenipa para que tal deficiência fosse corrigida foram baixadas em 2005. Já lá se vão nove anos. O doutor esclareceu que, antes de bater às portas do Judiciário, enviou uma recomendação à Anac. Deu-se em 27 de agosto de 2003.
Nesse documento, Ailton de Souza aconselhou a agência a implementar imediatamente as ordens do Cenipa. Entre elas a proibição dos voos de avaliação conduzidos por inspetores não habilitados a operar o avião a ser checado e a abertura de processo de capacitação dos avaliadores.
Como a recomendação da Procuradoria foi ignorada pela Anac, o doutor concluiu que há "uma omissão ilícita" que leva à "conivência dessa autarquia com eventuais acidentes aéreos, colocando em risco não somente a segurança aeronáutica, mas, principalmente, vidas e bens materiais dos usuários dos serviços aéreos e profissionais da área."
O procurador traduziu os riscos em números: "O relatório de acidentes da aviação civil, executado pelo Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Cenipa), demonstra a gravidade da situação no Brasil. Até 2012, foram 1.026 acidentes aéreos, com perda de 299 aeronaves e 983 mortes em 250 acidentes fatais. Em 2013, foram 19 acidentes fatais no país, até julho, com a morte de 42 pessoas."
Incluindo os acidentes que não resultaram em morte, "o Cenipa registrou, até 31 de julho de 2013, 103 acidentes na aviação civil do país, sendo que, em 35% dessas ocorrências, houve violações de leis e normas da aviação e, em 90% dos acidentes, o 'fator humano' está presente."
Diante desse quadro, não restou ao procurador senão recorrer ao Judiciário. Na petição, ele pede à Justiça que obrigue a Anac a cumprir a legislação e as ordens emanadas nas resoluções de segurança do Cenipa. Em razão dos riscos que a omissão acarreta, pediu que seja expedida uma liminar (decisão provisória) determinando a imediata proibição dos exames de pilotos realizados por inspetores sem a necessária capacitação e a realização de um programa de treinamento dos inspetores.
De resto, o procurador requereu: que a decisão judicial tenha validade em todo o território nacional, que a Anac dê publicidade às providência no site que mantém na internet, e que seja estipulada uma multa diária de R$ 100 mil para o caso de descumprimento das ordens judiciais. A Anac não se manifestou sobre a ação. Alegou que ainda não foi notificada.
– Serviço: aqui, a íntegra da ação movida pelo Ministério Público Federal contra a Anac (36 páginas).
Sobre o autor
Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.
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