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Caduca, diplomacia do Brasil virou um adorno

Josias de Souza

20/02/2014 06h32

Área central de Caracas tomada por manifestantes descontentes com governo Nicolás Maduro

Saudades da diplomacia brasileira, né? Pois é, o Brasil não tinha tanta relevância. Ninguém prestava muita atenção no que ele dizia. Mas pelo menos sua diplomacia sabia como se pronunciar. Se acontecesse o pior, se tudo desse errado, sobrava a coerência da diplomacia brasileira. Foi bom enquanto durou. Ninguém disse ainda, talvez por pena, mas a diplomacia brasileira caducou na Venezuela. Tornou-se uma espécie de velha maluca que faz tricô com o novelo de suas próprias contradições.

Não que a diplomacia brasileira não esteja preocupada. Ela está tensa. Nesta quarta-feira (19), chegou a pendurar no site do Itamaraty uma nota. Experimente preencher os espaços vazios. Seja diplomata por um minuto. E ajude a velha maluca a se localizar no mundo: "O Governo brasileiro acompanha com preocupação a deterioração do quadro político e institucional na ……………. e lamenta profundamente as mortes ocorridas em ……………… O Governo brasileiro conclama todas as partes envolvidas a dialogar. A crise política na ……………… deve ser equacionada pelos próprios ……………….., de forma pacífica e com base no respeito às instituições e aos direitos humanos."

Se você escreveu que a preocupação da diplomacia brasileira é com a 'Venezuela', que as mortes mencionadas ocorreram em 'Caracas' e que essa crise na 'Venezuela' só pode ser equacionada pelos próprios 'venezuelanos'…, se você anotou tudo isso, está de parabéns! A nota da velha maluca, que pode ser lida aqui, diz outra coisa. O texto trata da crise política 'na Ucrânia', chora as mortes 'ocorridas em Kiev' e prega que só os 'ucranianos' podem livrar a 'Ucrânia' da crise. Ou seja: você errou tudo. O que atesta sua sanidade mental. A velha é que está maluca, não você.

O meio-fio ferve na Venezuela. Repletas, as ruas exigem que o presidente Nicolás Maduro liberte o opositor Leopoldo López, preso por ter cometido o crime de se opor. Com uma agravante: radical, López se opõe radicalmente. Nesta quarta, o presidente Maduro, já meio podre, foi à tevê. Queixou-se da algazarra na província de Táchira. "Se tiver que decretar estado de exceção e meter os tanques, estou pronto para isso!", disse ele, como que decidido a tocar o país na base do vai ou racha. Ainda que rachado.

E a diplomacia brasileira? Bem, o Itamaraty informa que "o governo brasileiro acredita ser mais eficaz, no que diz respeito a tomada de posição sobre a situação na Venezuela, manifestação coletiva dos países…" Há três dias, a coletividade do Mercosul soltou uma nota. É nessa peça que a velha maluca se escora. Nela se lê que "os Estados membros" do Mecosul "rejeitam as ações criminosas de grupos violentos que querem espalhar a intolerância e o ódio na República Bolivariana da Venezuela como uma ferramenta política." E apoiam "o aprofundamento do diálogo, como tem sido promovido pelo presidente Nicolás Maduro nas últimas semanas…" Repetindo: Maduro é fabuloso, o melhor presidente que o Mercosul já viu.

A Venezuela, como se sabe, integra o Mercosul. A julgar pelo teor da nota, o próprio Nicolás Maduro deve ter ditado o texto. A diplomacia brasileira aceitou porque, desde que ficou maluca, ela está convencida de que carrega dentro de si uma alma bolivariana. E todas as bolivarianas opiniões do Mercosul sobre a Venezuela são suspeitas. É impossível ser completamente objetivo sobre a própria espécie.

Diz-se que Dilma Rousseff tem 39 ministros. Não é bem assim. Computando-se o 'chanceler do B', Marco Aurélio Garcia, chega-se a 40. Sobre Ucrânia, é Luiz Alberto Figueiredo, o chanceler oficial, quem guia as opiniões da velha maluca. Sobre Venezuela, é Garcia quem dá os principais pitacos. Mesmo que quisesse emitir opiniões mais negativas sobre a gestão de Nicolás Maduro, Garcia pronunciaria conclusões com um vício de origem: são de um bolivariano.

O governo venezuelano aaaa-doooo-roooou a nota do Mercosul. Recebeu-a como "uma demonstração de solidariedade". Afinal, disse o chanceler da Venezuela, Elias Jaua, "ninguém pode negar que o governo bolivariano esteja dialogando" com seus opositores. Bem verdade que a conversa ocorre na cela, não na sala. Mas, que diabo, não se pode ter tudo na vida.

Quando o Paraguai acionou sua Constituição contra o presidente Fernando Lugo, impedindo-o por 39 votos a 4, num ato soberano do Senado, a diplomacia brasileira surtou. Não havia tropas nas ruas de Assunção, a imprensa paraguaia trabalhava normalmente, o destituído aceitou a destituição… Porém, inconformada com tanta normalidade, a velha maluca deixou-se influenciar pela insensatez de outra anciã, a presidente argentina Cristina Kirchner. O Paraguai foi enxotado do Mercosul a pontapés (depois tiveram de adulá-lo para retornar). Na mesma época, a Venezuela, exemplo de democracia, foi admitida no grupo.

Ao conceder asilo político para o senador boliviano Roger Pinto Molina, abrigando-o na embaixada brasileira em La Paz, a diplomacia brasileira ergueu-se dentro dos sapatos. Agachou-se na sequência ao silenciar sobre a descortesia do presidente Evo Morales, que negou o salvo-conduto ao asilado, empurrando-o para a fuga. Hoje, o desafeto de Evo mora em Brasília, num quarto de empregada do apartamento funcional de um senador do Acre, Sérgio Petecão (PSD). E a velha maluca avacalha o direito de asilo, postergando-o.

Se olhasse para a Venezuela como olha para a Ucrânia, a diplomacia brasileira talvez fornecesse ao povo vizinho o que ele precisa. Os venezuelanos necessitam de um mediador isento. Ao diluir sua autoridade numa "manifestação coletiva" que endossa o bolivarianismo de Maduro, a diplomacia brasileira entra no enredo da crise no papel de adorno.

A velha maluca passou a ser tratada no continente como uma tiazona excêntrica. É recebida nas reuniões da família porque, afinal, pertence à família. Mas todos estão instruídos para não rir de suas esquisitices nem estimular qualquer sentimento que não seja o ódio àqueles que não correspondam ao ideal bolivariano de humanidade. A diplomacia brasileira é capaz de tudo, menos de fazer nexo.

Estudantes erguem barricada nas ruas da cidade venezuelana de Chacao

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Sobre o autor

Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.

Sobre o blog

A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.


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