Após 50 anos, o silêncio dos militares é gritante
Josias de Souza
30/03/2014 05h11
Os remorsos históricos nunca são imediatos. As grandes expiações sempre chegam tarde. Mas os responsáveis pelos excessos da ditadura militar brasileira exageram. Passado meio século, eles ainda não atingiram o estágio da crise de consciência. A fase da contrição talvez chegue um dia. Mas virá quando já não adiantar mais nada.
Há três dias, numa audiência pública no Senado, perguntaram ao ministro Celso Amorim (Defesa) se o governo não iria dizer alguma coisa sobre o caso do ex-deputado Rubens Paiva, moído na pancada e assassinado no Doi-Codi, no Rio. Ele deu uma resposta subdividida em três partes:
1. "O Estado brasileiro, ao pagar as indenizações já, de certa maneira, pediu desculpa por tudo que ocorreu."
2. "Agora cabe, sim, esclarecer a verdade. Estamos plenamente de acordo e cooperando nisso em tudo o que podemos."
3. "As Forças Armadas de hoje não têm nada a ver com aquilo".
Amorim soou injusto, inverídico e inútil. Foi injusto porque, ao reduzir tudo a uma questão financeira, converteu vítimas em cifrões e sonegou aos criminosos até mesmo a saída mais cínica de gozar duas vezes —uma com o crime e outra com a expiação.
Foi inverídico porque, sempre que procuradas para esclarecer alguma coisa, as Forças Armadas reagem com o silêncio. É como se insinuassem que calam porque as "infâmias" dirigidas à corporação não merecem resposta.
De resto, Amorim soou inútil porque sua desconversa não tem nenhuma serventia para o pedaço mais moço das Forças Armadas. Enquanto não forem desfeitas mentiras como as que converteram Rubens Paiva de cadáver estatal em prisioneiro resgatado por "terroristas", todo militar fica sujeito a ser chamado de culpado ou conivente.
Costuma-se dizer que a história pertence aos vitoriosos. Nem sempre. Embora tenha esmigalhado o inimigo doméstico, as Forças Armadas não podem fazer barulho em torno do que chamam de triunfo.
Certos militares da velha-guarda afirmam que a demolição do Muro de Berlim provou o despautério da ideologia que levou a esquerda brasileira às armas. Nessa versão, a ditadura salvou o Brasil da insanidade dos seus radicais.
O diabo é que o silêncio das Forças Armadas grita há 50 anos que os militares brasileiros prevaleceram numa guerra de porão —com muito sangue e pouco método. Empregaram práticas das quais não podem se vangloriar no alto do caixote, em praça pública.
Como qualquer repartição pública, as Forças Armadas são custeadas com o dinheiro dos impostos. Aceitar com naturalidade o silêncio perpétuo sobre a tortura e o sumiço de compatriotas equivaleria a tratar todo cidadão em dia com o fisco como cúmplice da barbárie.
O silêncio dos militares é o ruído rouco de um passado que não passa. É o barulho de uma história que tem início e meio, mas não tem fim. O silêncio impede que os desaparecidos desapareçam. Eles sobrevivem no inconformismo de viúvas, mães e parentes privados do direito de enterrar punhados de ossos sobre os quais possam derramar lágrimas e depositar flores no Dia de Finados.
Caprichoso, o destino providenciou para que o cinquentenário da ditadura caísse no governo da ex-torturada Dilma Rousseff. Em qualquer administração, o silêncio dos responsáveis pelos excessos da ditadura militar brasileira soaria mal. Sob Dilma, o mesmo velho silêncio torna-se gritante.
Sobre o autor
Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.
Sobre o blog
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