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Dilma tornou-se principal cabo eleitoral de Aécio

Josias de Souza

15/06/2014 07h35

As épocas, como as festas, costumam acabar em detritos. Para que outra comece, alguém tem de fazer uma boa faxina. Em 2002, após oito anos de PSDB, o eleitorado escalou o PT para realizar o serviço. Decorridos quase 12 anos, o Datafolha informa que 74% dos eleitores enxergam 2014 como um ano de ressacas. Procura-se novamente um faxineiro.

Neste sábado, o tucanato formalizou a indicação de Aécio Neves. Ele ainda não é favorito. Mas, desde FHC, nenhum tucano foi à disputa com tantas chances de apalpar a vassoura. Empurra-o uma cabo eleitoral de peso. Chama-se Dilma Rousseff. É graças à deterioração do governo dela que Aécio aproxima-se do segundo turno da eleição sem ter levado à mesa nenhum plano de ação com começo, meio e fim.

Dilma reivindica uma chance de começar de novo. Alega que, com mais quatro anos, consegue arrumar a casa. Mas ela não oferece à plateia nada que se assemelhe a um exame de consciência sobre os tropeços na área econômica e o excesso de aparelhamento do Estado. Com isso, a candidata à reeleição leva água para o balde da oposição.

O que os adeptos da mudança buscam é alguém com capacidade para metabolizar o acontecido, limpar pelo menos a corrupção que vaza pelas bordas do tapete, reacender o PIB, apagar a inflação e verificar se não ficou algum apadrinhado do petismo ou do Renan Calheiros escondido dentro do sofá da Petrobras. Em junho de 2013, as ruas torceram o nariz para "tudo isso que está aí". Agora, o eleitor sinaliza a intenção de ir além da cara de nojo.

Aécio maneja mais metáforas do que propostas. Na convenção deste sábado, disse que a "brisa" que sopra o desejo de mudanças tornou-se "ventania". E está na bica de virar um "tsunami que vai varrer do governo federal aqueles que lá não têm se mostrado dignos e capazes de atender às demandas da população brasileira."

Enveredando pela seara dos símbolos, o candidato evocou duas memórias: "Se o presidente Juscelino permitiu, 60 anos atrás, o reencontro do Brasil com o desenvolvimento e a modernidade, coube a Tancredo, 30 anos depois, permitir que a gente se reencontrasse com a democracia e a liberdade. Outros 30 anos se passaram e vamos conduzir o Brasil ao reencontro com a decência."

Ironicamente, o Juscelino Kubitschek do raciocínio de Aécio, dinâmico e moderno, é uma construção a posteriori. O personagem real não era senão um político tradicional, com todas as suspeitas comuns à fauna. Era 100% feito de autoconfiança. E governou por cima do próprio governo. Seu estilo já não serve para quem precisa adotar soluções rápidas sem esbarrar nos órgãos de controle.

Tomando-se as décadas como minutos da histórica, pode-se dizer que o Brasil é uma sucessão de recomeços. Não é exagero afirmar que tudo o que aconteceu desde Juscelino foi o país real tentando alcançar a nação desenvolvida criada artificialmente, em ritmo de truque cinematográfico, por JK, o presidente dos 50 anos em 5.

Durante todo esse tempo, o Brasil tenta decidir que diabo de país deseja ser. Vieram Jânio e a renúncia, Jango e o plebiscito que restaurou o presidencialismo, 1964 e o golpe, as diretas e sua rejeição… Nesse contexto, Tancredo foi um extraordinário tecelão que produziu o tricô da redemocratização e morreu em seguida para que o país pudesse aprender com o Sarney, o fisiologismo e o Plano Cruzado tudo o que jamais deveria ser tentado novamente.

Por mal dos pecados, o primeiro presidente eleito diretamente depois da ditadura, Collor, sofreu impeachment por déficit de decência. Só no recomeço protagonizado por Itamar o Brasil conseguiria domar a inflação que Juscelino havia inaugurado junto com Brasília. Sucessor do topete-tampão, FHC tornou Real a moeda que nascera de uma sigla mágica: URV.

Aécio entrou no auditório em que se realizou a convenção do PSDB de mãos dadas com FHC. Finalmente, o PSDB retira seu principal líder do armário. Sua administração foi celebrada em vídeo. Deram-lhe até o direito ao microfone: "As urnas clamam, querem mudança", discursou o ex-presidente. "Elas cansaram de empulhação, corrupção, mentira e distanciamento entre o governo e o povo."

FHC prosseguiu: "Nós temos que ouvir o povo, estar mais próximos do povo, ganhar a confiança do povo. A caminhada do Aécio será essa." Ele discorreu sobre a Era Lula com uma dose cavalar de veneno. Dedicou ao PT e aos seus filiados adjetivos tóxicos —"ladrões" e "farsantes", por exemplo.

Bernard Shaw disse certa vez que civilização é o que sobra para ser desenterrado dez mil anos depois. Em seu discurso, Aécio fustigou o PT desenterrando da gestão FHC aquilo que ela teve de melhor: "Pelo menos numa coisa nossos adversários mantiveram a coerência. Quem foi contra o Plano Real e a Lei de Responsabilidade Fiscal é quem hoje permite a volta da inflação e assina a maldita contabilidade criativa. São os que dividem o Brasil de forma perversa entre nós e eles."

Aécio não desconhece que, no atacado, os governos do PT também têm do que se jactar. O grande feito de Lula foi lançar um olhar mais generoso para o pedaço pobre da sociedade brasileira. Dilma está em apuros também porque a inflação mastiga o pouco que os programas de transferência de renda levaram à geladeira dos ex-excluídos.

O que Aécio e o tucanato não dizem é que, no varejo, os dois grupos —"nós e eles"— fizeram governos politicamente loteados e convencionais. FHC e Lula sacrificaram a aura de políticos diferentes. O sociólogo, mais intelectualizado, escorou-se em Max Weber para envernizar o fisiologismo com a teoria da troca da moeda da "convicção" pela da "responsabilidade". O ex-operário, mais prático, chegou aos mesmos fins sem se preocupar em justificar os meios.

Sob FHC, um personagem como Renan foi ministro da Justiça. Sob Lula e Dilma, ele é heroi da resistência no Congresso, junto com Sarney, Collor, Maluf e uma legião de etcéteras.

O Datafolha informa que 30% do eleitorado frequenta a conjuntura sem um candidato definido. O presidenciável que conquistar a alma dessa gente estará mais perto do êxito.

O diabo é que, para conquistar esse eleitor indeciso, será necessário, entre outras coisas, esclarecer como é possível obter o "reencontro com a decência" de que fala Aécio sem tomar distância dos "ladrões" e "farsantes" citados por FHC. Dilma perdeu essa guerra ao esconder atrás da porta a vassoura que acionara em 2011. Aécio deu um passo atrás ao coligar-se com o prontuário de Paulinho da Força Sindical, hoje dono do partido Solidariedade.

No gogó, o candidato que mais se aproxima do ideal da higienização é Eduardo Campos, do PSB. Que promete enviar Sarney e sua grei para a oposição. O problema é que, por enquanto, nem a companhia da ascética Marina Silva estimulou o eleitor a tomar Campos a sério. Diz-se que é por que o candidato ainda não se tornou conhecido. Será?

O que dirá o eleitor quando, conhecendo-o, descobrir que Campos coabitou com sarneys e renans o governo petista? E quando todo mundo ficar sabendo que o candidato da "nova política" governou Pernambuco a bordo de uma megacoligação em que cabia de tudo —de Severinos a Inocêncios?

Não é sem motivo que o sentimento de mudança ainda está à espera de um candidato que o sintetize. Conspira contra a definição do eleitorado a profusão de escândalos: mensalões, cartel Alstom-Siemens, Pasadena, refinaria Abreu e Lima, Alberto Youssef, Paulo Roberto Costa…

Principal beneficiário da erosão de Dilma, Aécio foge de polêmicas com Campos e Marina e busca um candidato a vice que lhe traga mais tempo de propaganda no rádio e na tevê. Mesmo que isso traga algum custo estético à coligação. Tenta-se a todo custo reduzir a vantagem de Dilma, dona de um latifúndio eletrônico de cerca de 13 minutos.

Antigamente, as alianças partidárias eram balaios de gatos. Hoje, são balaios de gatunos. E eles vão ficando mais pardos à medida que a campanha se consolida como apenas mais um ramo da publicidade. Para o eleitor, o risco é o de eleger a melhor encenação, em vez do melhor presidente.

A marquetagem do PT aposta em Lula para estancar o derretimento de Dilma. Para o partido, Lula ainda é a medida de todas as coisas. Caindo-lhe a ficha, o petismo talvez perceba que, desencantada com a mistificação da supergerente, uma parcela expressiva do eleitorado já adota outro sistema de medição.

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Sobre o autor

Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.

Sobre o blog

A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.


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