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Mantega: Tarifaço é ‘conversa para boi dormir’

Josias de Souza

01/08/2014 04h57

Gestor de uma política econômica que convive com inflação no topo da meta, truques contábeis, despesas acima da arrecadação, tarifas represadas e intervenções na cotação do dólar, Guido Mantega avalia que o governo realiza um bom trabalho.

Nesta quinta-feira (31), em entrevista ao Estadão, o ministro da Fazenda declarou que há no país "um pessimismo artificial, gerado por fatores extraeconômicos." Referiu-se à pregação dos presidenciáveis da oposição sobre a inevitabilidade de ajustes severos na economia em 2015, incluindo um tarifaço, nos seguintes termos:

"Já estamos reajustando as tarifas, os preços administrados. Essa história de que não reajustamos as tarifas é conversa para boi dormir. Basta ver os planos de saúde, os Correios, as loterias e também os remédios. Todos tiveram os reajustes previstos, independente de eleições."

Absteve-se de mencionar o dique que impede a Petrobras de reajustar os preços da gasolina. Sobre as contas de luz, afirmou: "Os reajustes ordinários de energia elétrica também estão ocorrendo. Tudo está normal. Então, não procede a ideia de que haja necessidade de tarifaço. Sei que eu não faria nenhum tarifaço em 2015."

Os dois principais antagonistas de Dilma Rousseff têm feito críticas ácidas ao governo. Ecoando uma impressão que se disseminou entre os empresários, Aécio Neves diz que a presidente inaugurou um "ciclo perverso" na economia. Eduardo Campos declara que ela "entregará um país pior do que recebeu" de Lula. Sem mencionar-lhes os nomes, Mantega contestou-os.

"Alguns ficaram interessados em criar um pouco de mau humor no país. Se tivesse mais otimismo na economia brasileira, talvez ela fosse melhor. O empresário tem que olhar o curto, o médio e o longo prazo, e não só o que está acontecendo. Tem um pessimismo artificial no país, gerado por fatores extraeconômicos. Tivemos isso antes da Copa também."

O ministro evocou a política monetária do governo tucano de Fernando Henrique Cardoso, desqualificando-a. De novo, sem citar nomes: "Nosso juro real é baixo, mesmo com a alta recente. Tinha gente no passado que praticava 10% de juro real. Nem me lembro os nomes… mas tinha gente que dizia que o juro de equilíbrio real do Brasil era de 10%, e praticava isso."

Mantega pintou um 2015 bem mais róseo do que o esboçado pela oposição, pelo mercado financeiro e pelo empresariado, sobretudo do setor industrial. Ele admitiu a necessidade de providências corretivas. Nada tão dramático, contudo.

"Sempre, em início de governo, há um espaço para se fazer ajustes, todo mundo faz. Mas teremos um cenário melhor em 2015. Certamente, não teremos aperto de crédito no ano que vem, porque a inflação, também, estará mais moderada."

Acrescentou: "Teremos, em 2015, a maturação dos investimentos das concessões e também do campo de Libra, do pré-sal. O Banco Central poderá flexibilizar a política monetária em 2015, quando a inflação der sinais de cenário melhor. O BC já parou de subir a Selic, o que já é bom. O cenário vai ser melhor, não há dúvida disso. O cenário internacional estará melhor e isso é muito importante."

Prosseguiu: "Além disso, a Petrobrás vai estar em um patamar de produção e refino muito maior, e isso dará mais lucro à empresa e, consequentemente, mais recolhimento de tributos. O mesmo ocorrerá com a Vale. A indústria extrativa de modo geral, não somente a Vale, estará em ritmo melhor em 2015. O quadro é positivo."

Desde 2010, último ano de Lula, a inflação roda acima do centro da meta oficial do governo, de 4,5%. Nos últimos meses, o índice furou a barreira dos 6%. No acumulado dos últimos 12 meses, ultrapassou o teto da meta, de 6,5%. Tudo isso levou o Banco Central a abandonar a tentativa de Dilma de baixar a taxa de juros na marra. Mas Mantega não se dá por achado.

"Temos forte queda de inflação no país. Os dados de IPCA, e também de IGP-M, indicam uma curva inclinada para baixo. Esse segundo semestre será de inflação baixa. Os meses de julho e agosto são de inflação baixa, e o consumidor já sente isso no bolso."

A julgar pelo sentimento captado pelas últimas pesquisas eleitorais, o que o consumidor sente no bolso é a fisgada da carestia. A corrosão das expectativas puxa para baixo a aprovação do governo, comprime a taxa de intenção de votos em Dilma e anima a oposição, especialmente o tucanato.

E Mantega: "A alta de preços está mais maneira, embora tenhamos convivido com a questão da seca no início do ano. Isso é bom para a economia. O consumidor está com um poder aquisitivo melhor agora, porque a inflação caiu. As medidas de política monetária adotadas pelo Banco Central darão um alívio no crédito."

O ministro enxerga mais suavidade na ação do Banco Central: "Até agora, a política monetária tem sido severa. Além da própria Selic, que foi elevada por mais de um ano e agora deu uma parada, em 11% ao ano. Foi uma política monetária apertada, porque demos prioridade absoluta para baixar a inflação."

Há no mercado muitas dúvidas quanto aos efeitos da injeção de dinheiro na economia que o BC promoveu recentemente. Ainda não há evidências sólidas de que os bancos se animarão a emprestar. Tampouco há clareza quanto à disposição de empresas e consumidores de contrair novos créditos.

Mantega, porém, é movido a certezas: "Agora que a inflação está moderada, o BC fez essa medida que melhora a liquidez do mercado. Ela viabiliza a compra de carteiras, que estava inviabilizada. Isso tinha dado uma emperrada, e agora vai voltar a ter mais crédito."

Como não pode celebrar o passado recente, Mantega dedica-se a cultuar o futuro, que não pode ser apalpado nem conferido: "Agora estamos num ponto de inflexão", diz o ministro. "O segundo semestre de 2014 será melhor do que o primeiro, não tenho nenhuma dúvida."

Heimmm? "Os primeiros sinais positivos vêm de dentro, com dois meses consecutivos de melhora na confiança dos consumidores e com a queda mais forte da inflação. Além disso, teremos muito mais dias úteis do que no primeiro semestre, que teve a Copa do Mundo. O pessoal vai poder consumir mais."

O ministro soou enfático: "Agora, começa a inflexão. Também a restrição de crédito, que havia, começa a reduzir. Os bancos privados colocaram o pé no freio. As medidas que tomamos garantem uma melhora do mercado."

Será? "Tivemos melhoria geral, porque a Bolsa de Valores registrou uma alta no primeiro semestre, e nos últimos seis meses a taxa de câmbio teve uma valorização de 9%. Isso cria as condições para a normalização. Os aplicadores estrangeiros que vieram para a Bolsa ganharam dinheiro e isso deixa o mercado animado."

Disseminaram-se no mercado previsões molestas sobre o PIB, o Produto Interno Bruto. Estima-se que a taxa de crescimento fechará o ano ao redor de 1%. Não são raras as estimativas de que talvez feche abaixo desse patamar. Avalia-se que há um esgotamento da fórmula que combina a oferta de crédito e o estímulo ao consumo.

Agora, para que a economia cresça, seria necessário elevar a produtividade dos trabalhadores empregados. Algo que só pode ser obtido por meio da elevação dos investimentos, sobretudo em infraestrutura. No entanto, Mantega prefere mimetizar a chefe Dilma, atribuindo o nanismo do PIB apenas à crise internacional.

"Tivemos um primeiro semestre mais moderado, do ponto de vista do crescimento, por conta da economia mundial. O primeiro trimestre não registrou o crescimento esperado nos Estados Unidos, que frustraram todas as expectativas, e também uma lentidão da União Europeia. O FMI reduziu a projeção de crescimento mundial por conta dos dados do primeiro semestre. Até a China deu uma desacelerada no começo do ano."

A despeito de tudo, Mantega, de novo, mira o futuro próximo com olhos otimistas: "Agora, a economia americana está dando sinais mais fortes de uma retomada, enfim. Quando os Estados Unidos melhoram, a China imediatamente melhora também. E isso tudo ajuda. A China deu uma melhorada no segundo trimestre."

O ministro reconhece: "Temos uma dinâmica própria de crescimento, mas dependemos também do mercado internacional. Nossa indústria tem menos espaço para exportar com a queda mundial. A Europa é um terço do mercado global e desde 2011 está em crise". Mas ele sé enxerga luz numa conjuntura em que muitos não conseguem ver nem o túnel: "Lentamente, no entanto, tudo está melhorando."

Para compensar os gastos acima da capacidade do fisco de arrecadar tributos, o governo tem recorridos a truques contábeis. A mágica mais recente foi a transferência à Petrobras, sem licitação, do direito de explorar mais quatro campos petrolíferos do pré-sal. A providência levará a estatal petroleira a pagar ao Tesouro, ainda em 2014, algo como R$ 2 bilhões.

Avesso à expressão "corte de despesas", Mantega prefere soltar fogos pelo ingresso desta e de outras receitas extraordinárias no caixa a promover um aperto no cinto. "No primeiro semestre, o crescimento foi inferior e, por isso, teve arrecadação menor. No segundo semestre, a atividade será maior, e, portanto, a arrecadação será maior", ele afirma.

"Temos os Refis em curso, com a entrada de R$ 18 bilhões, e outras receitas. Haverá o leilão do 4G, que deve render R$ 8 bilhões, além dos R$ 2 bilhões que a Petrobrás pagará por ter obtido a concessão de campos de petróleo do pré-sal. Vejo os balanços das empresas no segundo trimestre e daqui a pouco isso vai chegar no meu caixa sob a forma de tributos, como Imposto de Renda Pessoa Jurídica e outros."

Ainda assim, o ministro se esquiva de assegurar o cumprimento das metas orçamentárias do governo. Limita-se a dizer que não há corpo mole: "Estamos fazendo todo o esforço para meta fiscal ser atingida. As despesas não estão fora de controle, as receitas que frustraram por conta do ritmo da economia no primeiro semestre."

De resto, Mantega esclarece que vem aí uma elevação do imposto cobrado sobre as bebidas. "É sempre difícil fazer um aumento de tributo. Além do mais, o Congresso só terá mais uma semana de trabalho, e isso inviabiliza algumas medidas. Mas discutimos com os setores sempre. Nós combinamos um aumento da tributação com o setor de bebidas para começar em setembro."

No setor energético, a combinação de crise hídrica com o desconto nas contas de luz resultou numa superutilização de energia térmica, que é mais cara. Com isso, as distribuidoras de energia dobraram os joelhos. E o governo viu-se compelido coordenar uma operação de $ocorro bilionário. Logo, logo, a encrenca se materializará nas contas de luz. Para Mantega, nada que tire o sono:

"O crédito dos bancos para a Câmara de Compensação de Energia Elétrica [CCEE] foi uma solução do mercado. Foi algo totalmente privado, uma solução com grande participação dos bancos privados. Além dos R$ 11,2 bilhões emprestados no começo do ano, teremos agora mais um empréstimo do consórcio de bancos para a CCEE, que será de R$ 3,5 bilhões. Já os R$ 3 bilhões do BNDES serão a última tranche."

Qualquer dia desses, ao olhar-se no espelho pela manhã, para escovar os dentes, Guido Mantega tomará um susto com sua imagem refletida. Ela lhe dirá: "Bom dia, ministro. Eu sou a autocrítica. Vim apresentar o senhor a si mesmo."

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Sobre o autor

Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.

Sobre o blog

A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.


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