Lula leva a campanha do pântano para a sarjeta
Josias de Souza
16/10/2014 05h04
Na noite de terça-feira, no debate da tevê Bandeirantes, a campanha presidencial havia chegado ao pântano. Sob refletores, Dilma e Aécio dedicaram-se a jogar lama um no outro. Na noite desta quarta, num comício nos fundões do Pará, Lula arrastou a disputa para a sarjeta. Insinuou que, eleito, Aécio pode instalar em Brasília uma Presidência movida a álcool.
Num desses surtos de loquacidade que costuma acometê-lo sempre que entra em contato com um microfone e uma plateia, Lula disse o seguinte: "Vi esses dias, no debate da TV, um candidato dizendo que seu governo era da decência e da competência. Mas eu pergunto: que decência e competência se, às 3 horas da manhã, ele foi parado em uma rua no Rio de Janeiro e se recusou a soprar um bafômetro para dizer se tinha bebido ou não?"
O morubixaba petista arrematou: "Como uma pessoa se recusa a fazer um teste do bafômetro e diz que vai governar com decência e competência? Palavras são fáceis de dizer. Difícil é ter caráter. E poucas pessoas têm caráter nesse país como a Dilma Rousseff."
Lula questionou o caráter de Aécio num palanque montado no município paraense de Ananindeua. Ele dividia a cena com um dos mais notórios prontuários da política nacional, Jáder Barbalho, e com o herdeiro político dele, o filho Helder Barbalho, candidato ao governo do Pará.
O episódio evocado por Lula ocorreu em 2011. Parado numa blitz da Lei Seca, no Rio, Aécio recusou-se a soprar o bafômetro e exibiu ao agente de trânsito uma carteira de motorista vencida. O documento foi apreendido. Na época, o hoje presidenciável travou com a repórter Adriana Vasconcelos o seguinte diálogo:
— O que aconteceu? Estava a três quadras do meu apartamento, voltando de um jantar, quando fui parado numa blitz. Uma operação corretíssima, aliás, de alto nível e que deve ser levada a todo o Brasil. Abordado por um agente, que foi muito educado, fiz o que qualquer cidadão deve fazer. Entreguei meus documentos. O policial então me alertou que minha carteira estava vencida.
— Por que não quis fazer o teste do bafômetro? Ao constatar que minha carteira estava vencida, perguntei ao agente como deveria proceder. Ele explicou que eu teria de arrumar um outro condutor para o veículo. Como estávamos perto de um ponto de táxi, imediatamente consegui um motorista para conduzir o meu carro até em casa. Como já estava no banco do passageiro, achei desnecessário fazer o teste do bafômetro.
— Se arrependeu de não ter feito o teste, diante da repercussão do episódio? Talvez sim, para evitar a exploração do episódio. Na hora, achei desnecessário. O fato é que, se eu não estivesse com a minha carteira vencida, certamente teria feito o teste para poder seguir dirigindo até em casa. De qualquer forma, espero que tudo isso seja útil para que outros cidadãos como eu fiquem mais atentos e mantenham sua documentação em dia.
Ironicamente, Lula usou para realçar a fama de de bon vivant de Aécio um tipo de insinuação da qual já foi vítima. Em 2004, segundo ano do seu primeiro reinado, Lula abespinhara-se com uma notícia escrita pelo repórter Larry Rother e publicada no New York Times. O texto levantara a suspeita de que Lula presidia a República em meio a garrafas e goles.
Como peça jornalística, o trabalho de Rohter era precário. Baseava-se em mexericos anônimos e em fontes temerárias. Ganhou imerecida sobrevida graças à reação tresloucada do então presidente. Embriagado pelo poder, Lula expôs seus pendores imperiais e mandou cassar o visto de trabalho de Rohter, expulsando o correspondente do território brasileiro.
A decisão ficou em pé por menos de 24 horas. Derrubou-a o Superior Tribunal de Justiça. Restou do episódio apenas a sensação de que o texto de Rohter bulira nos traumas interiores de Lula, de cuja árvore genealógica pendem um pai e um irmão mortos pelo alcoolismo.
O mais inusitado do comício paraense foi Lula ter questionado o caráter alheio num ato político em que confraternizava com Jader, um personagem que o STF acaba de converter em réu. Qualquer um pode conviver com um Barbalho por obrigação protocolar, até por uma visão caolha de esperteza política. Porém…
Porém, entregar cargos federais a apadrinhados do Barbalho, como fez Lula, ir atrás do Barbalho, cortejar o Barbalho, escorar a governabilidade na convivência com o Barbalho, pedir votos para o herdeiro do Barbalho… Fazer tudo isso num instante em que o governo arde em escândalo, francamente, não é coisa de gente sóbria.
Num depoimento à jornalista Denise Paraná, reproduzido no livro 'Lula, o Filho do Brasil', o cacique do PT afirmara: "A verdade é o seguinte: política é como uma boa cachaça. Você toma a primeira dose e não tem mais como parar, só quando termina a garrafa." É, faz sentido.
Sobre o autor
Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.
Sobre o blog
A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.