MPF denuncia Pizzolato por falsidade ideológica
Josias de Souza
10/11/2014 17h04
Foragido na Itália, o mensaleiro Henrique Pizzolato tornou-se personagem de um novo processo judicial. Em denúncia protocolada na 1ª Vara da Justiça Federal de Santa Catarina, o Ministétio Público acusa-o de ter cometido o crime de falsidade ideológica ao assumir a identidade do irmão Celso Pizzolato, morto num acidente de carro em 1978. Datada de quinta-feira (6) da semana passada, a denúncia foi divulgada nesta segunda (10) no site da Procuradoria da República. A peça inclui um novo pedido de prisão do acusado.
Subscrita pelo procurador da República Nazareno Jorgealém Wolff, a denúncia descreve minuciosamente a saga de Pizzolato para virar outra pessoa. A petição escancara a falência dos controles de alguns dos principais órgãos públicos da República. Para virar Celso, Henrique Pizzolato não teve a mínima dificuldade para ludibriar a Justiça Eleitoral e repartições como a Polícia Federal e a Receita Federal. A série de burlas foi iniciada em 2007, seis anos antes do veredicto do mensalão.
Naquele ano, Pizzolato obteve num cartório da cidade catarinense de Concórdia, uma nova via da certidão de nascimento de do irmão. Por "falha ou dolo", o documento não trazia a informação de que Celso Pizzolato morrera na madrugada de 2 de abril de 1978. Com ele, o condenado conseguiria, por assim dizer, ressuscitar o morto, assumindo-lhe a identidade.
Ainda em 2007, Henrique Pizzolato atualizou a situação do irmão no CPF, o Cadastro de Pessoas Físicas do Ministério da Fazenda. Embora Celso Pizzolato tivesse descido à cova há quase 30 anos, seu CPF continuava "ativo", sob o número 195.484.199-04. Graças à inépcia da Fazenda, Pizzolato conseguiu regularizar também a situação fiscal do defunto. Em 9 de novembro de 2007, enviou pela internet a declaração de Isento do Imposto de Renda de Celso.
Apenas 21 dias depois, em 30 de novembro de 2007, Henrique Pizzolato requereu em Florianópolis, capital catarinense, uma carteira de identidade em nome de Celso. Exibiu a certidão de nascimento e o extrato do CPF do morto. E conseguiu que o Instituto de Identificação Civil de Santa Catarina, órgão da Polícia Civil, emitisse um a identidade de Celso com as digitais e a foto de Henrique. O RG de fancaria ganhou o número 6.089.146.
Na sequência, Henrique Pizzolato compareceu, em 3 de janeiro de 2008, ao cartório da 205a. Zona Eleitoral do bairro carioca de Copacabana. Valendo-se do papelório forjado, cadastrou o irmão Celso como um eleitor omisso em busca de reabilitação. Pagou multa e requereu um título eleitoral em nome do cadáver. Sem pestanejar, o TRE do Rio emitiu o título em 24 de janeiro de 2008, sob o número 1358.1681.0353.
Para completar o ciclo da "ressurreição", faltava a Pizzolato obter um passaporte em nome do irmão. Compareceu à delegacia da Polícia Federal na cidade catarinense de Lages. Foi atendido por dois agentes: Fernando Lorenzetti e Alex Philippi. Exibiu a papelada exigida: certidão de nascimento, CPF e título de eleitor. Tudo em nome de Celso, que, se estivesse vivo, teria mais de 50 anos. Por isso, dispensou-se a prova de regularidade junto ao serviço militar, só exigida dos brasileiros com menos de 45 anos.
Henrique Pizzolato preencheu o formulário com os dados do irmão. Pagou a taxa, entregou suas fotos e gravou as próprias digitais no documento. Sem suspeitar de nada, os agentes que o atenderam processaram o pedido. E no dia 25 de fevereiro de 2008, o Departamento de Polícia Federal emitiu em nome de Celso Pizzolato um passaporte com a cara e as digitais de Henrique Pizzolato. O documento ganhou o número CV670247.
Depois de virar um fantasma, enfiando-se nos sapatos do irmão, Henrique Pizzolato pôs-se a testar a qualidade da documentação que obtivera enganando as repartições públicas brasileiras. Em junho de 2008, viajou com o passaporte do falso Celso Pizzolato para a Argentina. Foi e voltou sem nenhum problema.
Nas eleições municipais daquele mesmo ano, Pizzolato votou por dois na disputa pela prefeitura do Rio. Numa sessão, dedilhou a urna eletrônica como Henrique. Noutra, pressionou as teclas como Celso. Repetiu o embuste no segundo turno da eleição. De novo, ninguém o incomodou.
Como se fosse pouco, Henrique Pizzolato requereu, na pele de Celso, uma segunda via do seu CPF. Fez isso pelo Correio, em 21 de setembro de 2009. Aproveitou para pedir a transferência de endereço da cidade de Concórdia (SC) para o Rio de Janeiro. Foi atendido.
Depois de ludibriar as autoridades brasileiras, Henrique Pizzolato aplicou o golpe no Consulado Geral da Itália no Rio. Em 5 de dezembro de 2010, valendo-se da carteira de identidade e do passaporte falsos, requereu e obteve um passaporte italiano em nome do irmão morto e com sua foto. Coisa fina, válida até 2020. Com mais de dois anos de antecedência, Pizzolato estava pronto para a fuga.
Encerrado em dezembro de 2012, o julgamento do mensalão resultou numa condenação de 12 anos e 7 meses de cadeia para Pizzolato. Admitidos pelo STF, os embargos infringentes (últimos recursos disponíveis aos condenados) esticaram o julgamento 4 de setembro de 2013, quando as condenações tornaram-se definitivas. Uma semana depois, em 11 de setembro, Henrique Pizzolato entrou, às 10h17, no território da Argentina. Estava disfarçado de Celso Pizzolato.
De Buenos Aires, o condenado voou para a Espanha e, depois, para a Itália. Descoberto na cidade de Maranello, foi preso em 5 de fevereiro. O Brasil pediu sua extradição. Mas a Justiça italiana indeferiu a pretensão. Aceitou a tese da defesa segundo a qual as cadeias brasileiras não oferecem garantias de vida ao preso. Pizzolato foi solto. E o Brasil prepara um recurso.
Pelas contas da Procuradoria da República, Pizzolato praticou e reincidiu no crime de falsidade ideológica sete vezes. Durante a preparação da fuga, utilizou os documentos falsos 12 vezes. O autor da ação pede à Justiça que: 1) receba a denúncia, 2) requisite informações ao Banco Central sobre a existência de contas bancárias em nome do morto Celso Pizzolato, e 3) expeça ordem de prisão contra Henrique Pizzolato.
O pedido de prisão é justificado nos seguintes termos: "Caso sua extradição seja deferida por aquele país, ou caso ele deixe voluntariamente a República Italiana em razão dos processos que lá também responde, certo é que empreenderá outros esforços para furtar-se a responder ao feito, em pleno desprezo para com o Brasil, suas leis e seu Poder Judiciário. Por tais razões, tem de ser mantida ativa a disposição em fazê-lo responder, sendo necessária portanto a decretação da prisão preventiva e a expedição de mandado para que seu nome seja mantido nas listas de procurados na esfera internacional. Do contrário, tendem esses crimes todos a restarem impunes e as instituições; públicas brasileiras, pelas quais manifesta desprezo, a atuarem inocuamente."
Sobre o autor
Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.
Sobre o blog
A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.