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Montanha da reforma política já pariu dois ratos

Josias de Souza

29/05/2015 05h05

— Senhor presidente, senhoras e senhores deputados, eu quero começar pedindo desculpas prévias aos companheiros dos chamados partidos pequenos. Não quero agredir nenhum companheiro de partido pequeno. Agora, eu sou radicalmente a favor da proibição de coligação.

Estamos no plenário da Câmara. Casa cheia. Presentes, 448 dos 513 deputados. Coisa inusual para uma tarde de quinta-feira, dia em que os congressistas voam para os seus Estados. A maratona da reforma política retardou as decolagens. E o deputado Silvio Costa (PSC-PE) discursava para um plenário repleto. Defendia a proibição das coligações partidárias em eleições proporcionais. Era esse o tema da emenda constitucional que estava prestes a ser votada.

— Nós precisamos proibir coligação. Por quê? Primeiro, nós vamos começar logo acabando com a indústria. Qual é a indústria? O dono do partido monta uma chapa. […] Aí o dono do partido pega um partido grande que dá dinheiro —e a palavra é essa mesma, todo mundo aqui sabe que existe essa negociação— o partido grande dá dinheiro ao dono de partido [pequeno], para fazer a chapa com os outros.

Apenas uma pessoa em um milhão é capaz de entender o significado de uma coligação partidária em eleições proporcionais. Mas Silvio Costa, com hediondo didatismo, parecia decidido a provar à audiência da TV Câmara que mesmo quem não entende nada de política é capaz de entender de politicagem.

— Existem duas indústrias: a indústria da chapa proporcional, para vender aqueles candidatos mais fracos, e a indústria majoritária do tempo de televisão. O partido tem lá o tempo de televisão, procura um candidato majoritário e vai vender o tempo. Todo mundo sabe que é assim. Tem que acabar com essa safadeza!

Muitos parlamentares acreditam que o que mais aniquila a imagem dos políticos é a imprensa que imprensa. Bobagem. O que costuma desgraçar os congressistas, além, obviamente, dos próprios desatinos, é a TV. As TVs do Legislativo estão sempre lá. Mostram os discursos insossos dos deputados e dos senadores. Até que…

De repente, entre uma e outra proclamação burocrática do presidente da Mesa, surge diante das câmeras um espetáculo de desnudamento. Nessas horas, emissoras como a TV Câmara até parecem TVs de verdade. Sabendo que a relevância da pauta potencializava a audiência, Sílvio Costa discursava para fora.

— A senhora e o senhor que estão em casa me ouvindo sabem quanto é um voto? R$ 10. Dez reais! Há partido pequeno que não tem um deputado federal. Mas teve 500 mil votos. E recebe R$ 5 milhões por ano do fundo partidário [verbas públicas destinadas ao custeio dos partidos]. O maior negócio deste país é ser dono de partido.
Temos que acabar com essa indústria! Vamos proibir a coligação!

Pronto. O telespectador da TV Câmara começava a entender o que é uma coligação em eleição proporcional. Serve para que pequenos partidos se juntem aos maiores. Assim, agrupados numa coligação, disputam as cadeiras no Legislativo. Às grande legendas interessa aumentar o seu tempo de propaganda no rádio e na televisão. Aos partidos nanicos, esclareceu Sílvio Costa, interessa fazer dinheiro. Além de vender o tempo de propaganda de que dispõem, indicam candidatos para pedir votos pela coligação. Quanto mais votos obtiveram, maior a quantidade de dinheiro público que arrancarão do fundo partidário. Com sorte, ainda elegem algum deputado.

Nas pegadas de Sílvio Costa, escalou a tribuna da Câmara o deputado Giovani Cherini (PDT-RS). Com idêntico didatismo, ele continuou arrancando véus defronte das câmeras.

— …Eu penso que o povo brasileiro, todo o tempo, vem dizendo para nós: é preciso diminuir o número de partidos. Cada cidadão que fica contrário a alguma coisa forma um novo partido, e, na largada, ele já tem R$ 3 milhões do fundo partidário. E depois, na época da eleição, ele negocia o seu espaço em televisão, por R$ 1 milhão, R$ 2 milhões, R$ 5 milhões, R$ 10 milhões… E vira um partido de negócios, partido sociedade anônima, que visa arrecadar fundos para que alguns malandros enriqueçam.

De fato, em nenhum outro país do mundo políticos e eleitores têm tanta opção partidária como no Brasil. O sujeito pode ser de esquerda, de centro esquerda, de meia esquerda, de um quarto de esquerda, de três quartos de esquerda, de direita responsável, de extrema direita, de direita disfarçada ou de direita escrachada… Não importa a ideologia do cidadão. Ele sempre encontra um partido feito sob medida. Hoje, há 32 legendas com registro no TSE, das quais 28 têm assento na Cânara. Outras três dezenas aguardam pela emissão da certidão de nascimento na fila do cartório da Justiça Eleitoral. O deputado Giovani Cherini exaspera-se:

— Nós não podemos ter —e qualquer filósofo, sociólogo neste país sabe que é impossível— 32 ideologias no Brasil, 32 pensamentos diferentes. Afinal, qual é a ideologia do seu partido? Às vezes, os jovens perguntam: Qual é a ideologia do seu partido? […] Acho que esta Casa pode dar um grande exemplo, terminando com as coligações. Chega de partido maior ter de comprar, a custo de milhões, o espaço de partidos menores, para eleger um ou dois deputados.
Cada partido tem de buscar o seu espaço. Terminando com as coligações, nós vamos ter, no máximo, 20 partidos no Brasil, e a sociedade vai entender qual é a ideologia daquele partido. Essa é a hora!

Chama-se Marcus Pestana (PSDB-MG) o autor da emenda que propunha a proibição das coligações partidárias em eleições para vereador, deputado estadual e deputado federal. Vem a ser um dos políticos mais próximos do presidente do tucanato, o senador Aécio Neves. Pestana também subiu à tribuna para defender sua proposta.

— Este é um momento crucial. Nós vamos decidir aqui se faremos uma reforma que mereça o nome, ou se a montanha vai parir um rato. Criamos uma enorme expectativa na sociedade. A tradução líquida será: fica tudo como está, para ver como é que fica.
A democracia no Brasil está sob risco, pelo esgotamento do modelo político-partidário eleitoral. As coligações proporcionais viraram um instrumento de perda de qualidade do sistema político decisório brasileiro. Um partido A faz uma aliança com o PSDB no Rio Grande do Norte e com o PT em São Paulo. Um partido B faz uma aliança com o PT em Pernambuco e com o PSDB em Minas Gerais. Há um desalinhamento ideológico e político, há um falseamento completo, que induz a sociedade ao erro.

A alturas tantas, Pestana comparou o descalabro brasileiro com a situacão verificada em outros países.

— O Parlamento da França tem dez partidos; o da Alemanha, sete partidos. […] Nós temos 28 partidos nesta Casa; na próxima Legislatura, teremos 35; na outra, talvez, 50. Assim, a hegemonia, a governabilidade não será possível. Coitados dos próximos presidentes da República, sejam eles quem forem! 
Nós não podemos, não temos o direito de criar essa expectativa na sociedade e fazer uma reforma pífia, a montanha parindo um rato.
Por isso, somos pelo fim das coligações proporcionais, pela autenticidade do quadro partidário brasileiro, pela fidelidade à vontade do eleitor.

Vencida a fase dos discursos, o modelo das coligações estava com as vísceras expostas. Os expectadores da TV Câmara testemunharam dois tipos de performances. Numa, os oradores atacando o sistema, expondo-lhe os vício$ em discursos dramáticos. Noutra, o silêncio da banda muda do plenário, paralisada diante da exposição de cifras e tramóias. E as câmeras ali, a desnudar-lhes as expressões faciais, as ênfases, as hesitações e os silêncios.

Na presidência da Mesa, Eduardo Cunha finalmente submeteu a proposta à votação. Para ser aprovada, a emenda precisava arrebanhar 308 votos. Os líderes orientaram suas bancadas. Os deputados digitaram seus votos. Abriu-se o painel eletrônico. E o fim das coligações foi rejeitado. Votaram "não" 236 deputados. Disseram "Sim", 206. Muito longe dos 308 necessários. Deu-se o que o autor da proposta temia: a montanha da pseudoreforma política pariu um rato. Em verdade, deu à luz dois camundongos.

No segunda votação realizada nesta quinta-feira, os deputados deliberaram sobre a criação de uma cláusula de barreira para dificultar o acesso dos partidos de aluguel às verbas e benesses públicas. Por um placar acachapante —369 votos a 39— os deputados aprovaram uma cláusula de barreira que, por pífia, não constitui um obstáculo real ao funcionamento da indústria de partidos.

Ficou decidido o seguinte: basta que o partido eleja um mísero deputado ou senador para ter acesso às burras do fundo partidário e à vitrine da propaganda eletrônica no rádio e na tevê. Supondo-se que essa norma seja confirmada pela Câmara e ratificada pelo Senado, apenas quatro dos atuais 32 partidos em funcionamento no Brasil seriam privados das benesses: PPL, PCB, PCO e PSTU.

Deve-se o duplo desastre a um acordo firmado por Eduardo Cunha, o morubixaba da Câmara, com a tribo dos pequenos partidos. Em troca dos votos dos nanicos à emenda que enfiou na Constituição o financiamento privado das eleições, Cunha ajeitou para que as coligações fossem mantidas e para que a barreira não barrasse.

Desse modo, ficou entendido que toda aquela conversa, todo aquele idealismo, toda aquela vontade de servir à sociedade, toda aquela busca por um sistema político mais razoável, tudo isso está impulsionado pela mesma força que empurra o noticiário político para a editoria de polícia: o dinheiro.

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Sobre o autor

Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.

Sobre o blog

A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.


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