Dilma ‘está colocando a mandioca nos brasileiros’, declara tucano na Câmara
Josias de Souza
25/06/2015 04h43
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Noutros tempos, a tribuna da Câmara era um local cerimonioso. Mesmo os mais exaltados costumavam levar sua ira na coleira. E carregavam mesuras no bolso. Ainda que fosse um simples 'Sua Excelência'. Mas esses tempos formais já passaram. Hoje, há sempre um orador que, ferozmente inspirado, só tem a oferecer insultos.
A quinta-feira acabara de ser inaugurada. Passava 1min53s da meia-noite. Nesse horário, as televisões comerciais já estão autorizadas a exibir sexo explícito. Mas a programação da TV Câmara não costuma mostrar nada tão excitante. Quem liga no canal não consegue mais desligar. Dorme. De repente…
O deputado Nilson Leitão (MT), no exercício da liderança do PSDB, escalou a tribuna da Câmara para discursar contra o projeto do governo que eleva a tributação da folha salarial das empresas. Ele evocou um discurso que Dilma Rousseff fizera na véspera, saudando a mandioca como "uma das maiores conquistas do Brasil" (se você não viu a presidente, assista abaixo).
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O tucano Leitão esgrimiu a tese segundo a qual Dilma semeará o desemprego ao retributar a folha salarial de setores econômicos que haviam sido desonerados. "Só na construção civil, serão mais de 350 mil desempregados", ele vaticionou, antes de emendar, em português pouco elaborado:
"O que a presidente Dilma acha que é magnífico para o Brasil, que é a mandioca, a mandioca é o que ela está colocando nos brasileiros com esse projeto de lei. A mandioca ela está colocando nos brasileiros Brasil afora. É uma irresponsabilidade sem tamanho esse projeto. Deve ser pra isso que ela quer a mandioca…. Essa incompetência dessa mulher vai falir o Brasil."
A comunista Jandira Feghali (PCdoB-RJ) arregalou os olhos. Observava o colega como se estivesse convencida de que o ser humano não é o resultado das forças de produção, como dizia Marx. No caso do tucano Leitão, o buraco era mais embaixo. Ou mais em cima, na psique.
O tucano Leitão não se deu por achado. Para ele, Dilma é quem precisa de camisa de força. "A presidente Dilma tem que ser internada", disse, para inquietação de Jandira. "Ela está precisando de um psiquiatra."
Na fase final do discurso, o deputado retomou a referência fálica que usara no início. "Vocês querem empurrar esse relatório [sobre a retributação da folha] goela abaixo. Esse relatório vai embrulhado numa mandioca de porte grande, para enfiar em todos os brasileiros Brasil afora. Ao fundo, ouvia-se Jandira. "Olha o baixo nível," ela ralhava. "Para com essa baixaria", repreendia.
Líder de Dilma na Câmara, o petista José Guimarães (CE) abespinhou-se. Correu ao microfone de apartes. Requereu ao presidente da sessão, o morubixaba peemedebista Eduardo Cunha (RJ), a retirada da mandioca "dos anais". Acusou o antagonista tucano de utilizar linguagem "de baixo calão". Lamentou: "Nesse nível não dá para estabelecer uma convivência respeitosa aqui dentro. Usando esse tipo de discurso chulo não dá."
Jandira Feghali ecoou Guimarães. Disse enxergar nas palavras do tucano Leitão "desrespeito, desqualificação e uma tentativa de fragilizar a relação institucional" entre o Legislativo e o Executivo. "Dilma Rousseff foi eleita", ela realçou. "Quem não aceita isso que vá…" A deputada ofereceu três alternativas ao colega: " Vá chorar, se encolhe ou vá torcer o seu próprio cabelo. Só não venha desrespeitar a presidente da República eleita."
Até Zequinha Sarney (PV-MA) saiu em defesa de Dilma. Escorando-se na "querida Bíblia", evocou o trecho em que o livro de Eclesiastes (3:1-8) ensina que há um tempo certo para cada propósito debaixo do céu. Tempo de matar e tempo de curar. Tempo de espalhar pedras e tempo de ajuntá-las. Tempo de rasgar e tempo de costurar. Tempo de odiar e tempo de amar. Tempo de lutar e tempo de viver em paz. No caso do tucano Leitão, disse Zequinha, o tempo era de calar, não de falar. "Esse discurso foi desastroso", reprovou.
O filho de Deus, digo, de José Sarney —que para muitos é a mesma coisa— conduzia bem a sua intervenção. A certa altura, porém, soou como se fizesse um desagravo à mandioca, não à presidente da República. Língua em riste, queixou-se do trecho do discurso em que o tucano Leitão "desqualificou a mandioca".
Lero vai, lero vem Zequinha se esforçou para encaixar na história da humanidade a planta da família das euforbiáceas, cujos grossos tubérculos tumultuavam a sessão noturna da Câmara. "A mandioca… as civilizações começaram a partir de quando o homem, o ser humano descobriu a cultura da agricultura", divagou Zequinha. "As civilizações indígenas, os povos que aqui chegaram, eles usaram a mandioca. Conseguiram viver."
Como que decidido a injetar comédia na tragédia, Zequinha prosseguiu: "Na minha terra, o Maranhão, tem uma farinha feita à base de mandioca, a farinha d'água. É um alimento básico do povo maranhense." Voltando-se para o tucano Leitão, arrematou: "Até nisso Sua Excelência se equivocou. […] Gostaria que esses discursos desrespeitosos estivessem fora dos nossos anais, porque eles desrespeitam a nossa Casa, a mulher e as instituições."
O ex-petista Chico Alencar (RJ), hoje um destacado deputado do PSOL, cuidou de recolocar o debate nos trilhos. "Decoro parlamentar revela-se também no jeito de se expressar", ensinou. "Nós temos uma posição absolutamente crítica em relação a esse governo, que consideramos desatroso… Agora, é preciso que nós, que nos tratamos por Excelência, tenhamos um patamar civilizatório mínimo para fazer as críticas."
Chico emendou: "Discursos machistas, sexistas, rebaixados, de nível rasteiro, não combinam com a dignidade que a gente pretende dar ao Parlamento. Portanto é melhor a gente elevar o nível, mesmo no cansaço da madrugada." O tucano Leitão voltou ao microfone. Imaginou-se que se desculparia. Mas não disse nada que se assemelhasse a um pedido de perdão.
Ficou entendido que a elevação de nível de que falara Chico Alencar não era a única alternativa da noite. Preferiu-se mandar rebaixar o teto. Ao encerrar a sessão, Eduardo Cunha encareceu aos servidores da taquigrafia que vigiassem a transcrição, para extrair dela as declarações impróprias. Ficou entendido que o presidente da Câmara não queria que a mandioca entrasse nos anais da Câmara.
Sobre o autor
Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.
Sobre o blog
A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.