Chocou-se com a cara da Câmara? Culpa sua!
Josias de Souza
24/04/2016 04h22
Há uma semana, na votação do impeachment, o pedaço do Brasil que ainda tem noção do ridículo se chocou com o que assistiu. Então a Câmara é isso?!? Foi difícil ouvir as manifestações de voto sem sentir uma espécie de vergonha interior. O desconforto aumentava cada vez que um deputado esbravejava em nome deste ou daquele familiar, de uma cidade ou de um Estado, de uma moral rota ou de uma ética insuspeitada, do torturador morto ou do prefeito que seria preso horas depois… No fundo da consciência da plateia uma voz bradava: "Hipócritas!".
Foi um espetáculo inusual. Só de raro em raro a Casa está tão cheia. Normalmente, as votações são simbólicas, aquelas em que os deputados apenas levantam a mão. Quando é preciso votar nominalmente, usa-se o painel eletrônico. Na sessão do impeachment, todos tiveram seus segundos de microfone. E a coisa degenerou. Tomado pelo número de vezes que foi mencionado, Deus deixou de ser full time. Se o Todo-Poderoso desse mesmo expediente integral certamente teria feito ecoar no plenário, com voz de trovão, o epíteto do Evangelho: "Raça de víboras."
Na visão da megabancada cristã, a Câmara virou um campo escolhido pelo Senhor para manifestar seus desígnios. Os deputados seriam apenas peças movidas por Ele. Mas seria sobrecarregar Deus além da conta forçá-lo a decidir entre a infantaria de Eduardo Cunha e a tropa de Dilma Rousseff. Mais fácil supor que, depois de criar o universo, Ele terceirizou a política ao Diabo.
Muito já se disse e escreveu sobre assunto nos útimos sete dias. Mas você deveria gastar um pedaço deste domingo para fazer uma introspecção. Pode ser após o despertar, barriga colada à pia do banheiro, enquanto espalha o dentifrício pelas cerdas da escova. Levando a experiência a sério, depois de bochechar e lavar o rosto, você enxergará no espelho, no instante em que erguer os olhos para pentear os cabelos, o reflexo de um culpado.
Indo mais fundo no processo de autoexame, você verá materializar-se diante de seus olhos o óbvio: parlamentares não surgem por geração espontânea. Eles nascem do voto. E talvez você levante da mesa do café da manhã convencido de que a crise no sistema representativo exige uma atitude. Um gesto individual e consciente. A crise não admite mais que o eleitor se mantenha exilado no conforto de sua omissão política. Intima-o a retornar à história, para moralizá-la.
O primeiro passo é o abandono da cômoda retórica de que os políticos "são todos iguais". Não são. A igualdade absoluta é uma impossibilidade genética. Bem verdade que o excesso de roubalheira faz todos os gatunos parecerem pardos. Mas a magia de momentos como esse é a possibilidade de redescobrir uma verdade que dá sentido à democracia: para os eleitos inconscientes, o eleitor impaciente é um santo remédio. Lembre-se: 2018 em aí. Você tem duas opções: ou vota direito ou continua se comportando como um deputado.
Sobre o autor
Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.
Sobre o blog
A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.