A barata e os ratos na retórica do impeachment
Josias de Souza
04/08/2016 02h59
A Comissão do Impeachment encerra seus trabalhos nesta quinta-feira com a aprovação do relatório em que Antonio Anastasia (PSDB-MG) recomenda a deposição de Dilma Rousseff. A essa altura, a comissão acumula perto de 240 horas de debates. Há pouco por dizer. Na sessão da véspera, os senadores Humberto Costa (PT-PE) e Cássio Cunha Lima (PSDB-PB) esgotaram o repertório de provocações numa troca de farpas que injetou no debate o que faltava: uma barata, inseto ortóptero, da família dos batídeos; e os ratos, roedores da família dos murídeos.
Ex-líder de Dilma no Senado, Humberto Costa pressionou uma vez mais a tecla preferida do petismo. "Estamos vivendo um golpe", ele reiterou. Insinuou que a eventual confirmação do afastamento de Dilma pelo plenário do Senado banalizará o instituto do impeachment. A pretexto de reforçar seu argumento, Humberto construiu uma analogia inusitada. Deixou Dilma em posição, digamos, kafkiana:
Líder do PSDB, Cássio Cunha Lima como que dobrou a meta, para utilizar expressão ao gosto de Dilma. Incluiu na prosa outras fúnebres criaturas.
A certa altura, Cássio mencionou "as delações e mais delações que confirmam na Lava Jato que a campanha de Dilma Rousseff foi financiada com dinheiro do petrolão." O petista Lindbergh Farias (RJ), destacado membro da infataria de Dilma, interveio:
— E o que falam do PSDB nas delações, senador Cássio, Vossa Excelência esqueceu?
Os jornais do dia traziam a notícia sobre o suborno de R$ 10 milhões que o ex-senador tucano Sérgio Guerra, já morto, recebera para sufocar uma CPI da Petrobras em 2009, época em que era presidente do PSDB federal. Cássio não se deu por achado:
— Aqueles que cometeram crimes nos partidos A, B ou C que paguem pelos seus crimes. Que possamos encerrar esse processo, que possamos dar cabo desse julgamento. Quanto mais esticarmos isso, mais o país vai ficar nessa situação de instalibilidade.
Baratas e ratos não são privilégios feios do Brasil. São universais. A diferença é que, nessa terra de palmeiras, por muitos anos, os personagens que se comportavam como legítimos representantes das famílias dos batídeos e dos murídeos continuavam atuando na política como se nada tivesse sido descoberto sobre seus hábitos. De raro em raro, quando as luzes acendiam, essas criaturas ziguezagueavam e escapavam. Não havia vassourada que as alcançasse.
A Lava Jato interrompeu um ciclo. A despeito de suas sensíveis hastes e do seu couro cascudo, a oligarquia política e empresarial migra gradativamente dos gabinetes do poder, das colunas sociais e da editoria de política para a cadeia. Num futuro próximo, a força-tarefa de Curitiba pode figurar nos livros de história como um ponto fora da curva. Mas, por ora, o brasileiro está achando tudo o maior barato.
Embora Dilma e o PT abominem a expressão "conjunto da obra", madame será enviada mais cedo para casa justamente porque, sob sua fama de gerente impecável, proliferaram a ruína econômica e a desfaçatez ética. Beneficiário direto da conjuntura, Michel Temer governa com a tranquilidade de quem dança um minueto à beira do precipício.
A Lava Jato já não permite que o PMDB e assemelhados sejam indultados por um surto qualquer de amnésia combinada. Enquanto prepara o "tchau" de Dilma, Brasília vive a neurose do que está por vir depois que os investigadores extraírem a derradeira gota de suor do último dedo da Odebrecht.
Sobre o autor
Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.
Sobre o blog
A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.