Brasil mostra ao mundo que criatividade sobrevive às crises e ao desgoverno
Josias de Souza
06/08/2016 04h37
Michel Temer sabia que seria vaiado. Resignado, evocou Nelson Rodrigues: "No Maracanã, vaia-se até minuto de silêncio." Estufando o peito como uma segunda barriga, o presidente interino decidiu na primeira hora que iria à cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos. Avaliara que, em certos momentos, é preciso manter a presença de espírito. Ao sentir o hálito espesso do estádio lotado, concluiu que o ideal seria conseguir a ausência de corpo. Notou bem cedo que já era tarde.
O protocolo previra a menção do nome do chefe do governo brasileiro nos primeiros momentos da festa. Mas sobreveio a contraordem do Planalto: Shhhhhhhhhhhhhh… Por que cutucar a plateia? Por alguns instantes, o mundo ficou se perguntando quem era aquele senhor de cenho crispado que estava ao lado do presidente do Comitê Olímpico Internacional, Thomas Bach. Por sorte, as câmeras foram logo seduzidas por Paulinho da Viola e sua magistral interpretação do hino brasileiro.
O estranhamento perdurou entre os observadores brasileiros. O que houve com o Temer? Como explicar o desânimo? Meu Deus, até o Galvão Bueno notou! Pena que Ronaldo, o fenômeno, não estivesse no estúdio da Globo. Ele viveu situação análoga na partida final da Copa na França. Teve uma pane no momento em que mais se esperava dele. O ex-craque decerto saberia decodificar os temores que levaram Temer a tremer.
Além de Temer, Dilma e Lula foram convidados para a festa. Ambos refugaram. Dilma chegou a lamentar numa entrevista: "Imagine que você vai dar uma festa, que trabalha durante vários anos para esta festa, cria as condições, coloca iluminação, chama a imprensa… E então, no dia da festa, alguém chega, toma o seu lugar e se apropria da festa. Esta é a história dos Jogos." Como de hábito, madame escorou-se em autocritérios para se vangloriar.
Dilma sabe que ela, Lula e Temer foram chamados para a festa inaugural da Olimpíada do Rio como tios excêntricos que são convidados para as reuniões de família. Ninguém sabe muito bem como tratá-los. Mas, afinal, são da família. As pessoas são orientadas a não rir de suas esquisitices e a tolerá-los —mesmo que a tolerância lhes conceda uma respeitabilidade que nem todos acham que merecem. Reza-se para que durmam no sofá. Ou finjam ser invisíveis —como Temer no Maracanã.
No fim das contas, o segundo plano a que foram relegados os políticos potencializou o brilho da festa do Rio. A ausência forçada de Dilma e Lula e a invisibilidade voluntária de Temer têm múltiplos significados. Constituem um parâmetro e um aviso. Revelam ao mundo que a criatividade brasileira sobrevive ao caos de três crises simultâneas: econômica, política e moral. E mostram que há vida longe do desgoverno e da corrupção. Tudo isso com um toque de originalidade: nunca antes na história da humanidade Sua Excelência o Nada havia proclamado a abertura dos Jogos Olímpicos. Sob vaias.
Sobre o autor
Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.
Sobre o blog
A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.