Turma do caixa dois trata a plateia como idiota
Josias de Souza
20/09/2016 05h38
Conforme previsto, surgiu na Câmara uma trama para colocar nos trilhos um projeto sobre caixa dois. O pretexto declarado é criminalizar a prática. O objetivo inconfessado é anistiar a bandalheira pretérita, concedendo perdão preventivo para a turma que conspira para "estancar a sangria" da Lava Jato. O interesse real não é restabelecer a moralidade, mas assegurar que a imoralidade permaneça impune.
A proposta de passar uma borracha na depravação entrou e saiu da pauta da sessão noturna da Câmara, nesta segunda-feira, sem que ninguém pudesse apalpá-la. Além de invisível, o projeto é órfão. Não há vestígio dos pais da manobra. Eles parecem ter vergonha de si mesmos. E não lhes faltam motivos.
A votação foi abortada por conta do alarido produzido por meia dúzia de insatisfeitos. O barulho deixou claro que o comportamento de alto risco dos vivaldinos expõe todo o Legislativo à autodesmoralização. Muitos já suspeitavam que este é um dos piores Parlamentos da história republicana. Mas não se imaginava que os deputados colocariam fogo às vestes.
Para apagar as digitais, os líderes escondidos atrás da manobra ressuscitaram um projeto de 2007, de autoria do ex-deputado Regis de Oliveira. Sugere mudanças à legislação eleitoral. Quase uma década depois, recebeu um enxerto sobre a criminalização do caixa dois. Decano da Câmara, o deputado Miro Teixeira (Rede-RJ) disse que a manobra é antirregimental.
Miro foi ao microfone para perguntar ao colega Beto Mansur (PRB-SP), que presidia a sessão, quem havia requerido o desengavetamento do projeto. Indagou também se o requerimento encontava-se sobre a mesa. Não obteve resposta. Seguiu-se o bafafá que levaria Mansur a retirar o projeto da pauta.
Irônico, Miro realçou o que chamou de "coincidência incrível." O projeto escalou a pauta de votações num instante em que "o presidente da República (Michel Temer) está no exterior, o presidente da Casa (Rodrigo Maia) está respondendo pela Presidência da República, o primeiro vice-presidente da Câmara (Waldir Maranhão) não está presidindo a sessão. E o deputado Beto Mansur (primeiro-secretário), que tem casca grossa nas costas, recebeu a incumbência de ali estar. Não o invejo."
Encerrada a sessão, o repórter procurou Beto Mansur, que travou com o blog o seguinte diálogo:
— O projeto de 2007 foi pautado por requerimento de quem? Ninguém quer ser pai dessa criança. Não sei.
— Há um requerimento? Esse projeto foi colocado na pauta. Não sou eu que faço a pauta.
— Mas para colocar na pauta, alguém tem que pedir, não? Decisão de líderes. Foi colocado na pauta. O que aconteceu é que me pediram para tocar a sessão, porque eu sei como se faz. Só isso.
— O projeto vai voltar em outra sessão? Desconheço o texto. Mas acho que houve uma reação do plenário a esse projeto. Tive que cancelar [a votação] porque não tinha acordo para poder continuar votando. Mas não conheço o texto. Quem conhece são os líderes lá.
— De que partido? É de todo mundo.
De acordo com Beto Mansur, caberá a Rodrigo Maia decidir quando a proposta retornará ao plenário. O deputado cuidou de tomar distância da iniciativa. "Em cima de mim não vão jogar essa proposta. Primeiro porque não preciso de nenhuma anistia. Segundo porque nem conheço o texto."
Além de Miro Teixeira, cerraram fileiras contra a anistia os deputados Alessandro Molon (Rede-RJ), Joaquim Passarinho (PSD-PA), Espiridião Amin (PP-SC), Ivan Valente (PSOL-SP), Rogério Rosso (PSD-DF), Laerte Bessa (PR-DF) e Jorge Sola (PT-BA). Os demais silenciaram. O interesse pela causa é pluripartidário, vai do PT ao PSDB, passando pelo PMDB, PP, PR e uma fila de etcéteras. Nos subterrâneos, diz-se que os maiores interessados são PSDB, PT e PP.
Os deputados parecem mesmo empenhados em testar até onde podem ir no seu desprezo pela opinião pública. Depois de pegar dinheiro sujo por baixo da mesa, os idealizadores da anistia decidiram tratar a plateia como idiota. Ainda não se deram conta de que roleta russa também pode levar ao suicídio.
Sobre o autor
Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.
Sobre o blog
A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.