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No caso Renan, Cármen Lúcia foi mais 'articuladora política' que magistrada

Josias de Souza

08/12/2016 05h56

Quem dispõem de poder e o exerce de forma arbitrária, erra o alvo. Quem abre mão de exercer o poder de que dispõem vira o alvo. Nas 48 horas que antecederam o julgamento da ação envolvendo Renan Calheiros, a ministra Cármen Lúcia, presidente do Supremo Tribunal Federal, atuou mais como articuladora política do que como magistrada. Com isso, contribuiu para solidificar a ideia de que a democracia moderna no Brasil é constituída por três poderes: o Executivo, o Judiciário e, acima de ambos, Renan Calheiros.

O blog ouviu duas das pessoas com assento no plenário do Senado que conversaram com Cármen Lúcia. Uma procurou a ministra. Outra foi procurada por ela. Ambas traçaram um cenário apocalíptico. Era como se a liminar do ministro Marco Aurélio Mello ordenando o afastamento de Renan do comando do Senado tivesse eliminado o chão da República. Diante da novidade, os políticos comportavam-se como se vivessem uma cena de desenho animado.

Nos desenhos animados, quando acaba o chão, os personagens continuam caminhando no vazio. Só caem quando percebem que estão pisando o nada. Se não se dessem conta, atravessariam o abismo. Os interlocutores de Cármen Lúcia defenderam, em essência, a tese segundo a qual o plenário do Supremo deveria eliminar o abismo aberto por Marco Aurélio com rapidez, antes que a República olhasse para baixo.

"Me ajude a pacificar essa Casa", rogou Cármen Lúcia em telefonema a uma das pessoas às quais recorreu no Senado. "Se tirar o Renan daquela cadeira, o governo do Michel Temer acaba", disse a voz do outro lado da linha, segundo relato feito ao blog. "O vice do Renan é do PT, Jorge Viana. Ele não tem compromisso nenhum com a agenda econômica do governo. O PT quer implodir os planos do governo."

A tese de que Renan é um pilar da República tornou-se um conto do vigário no qual Cármen Lúcia caiu. Convencida de que Renan é o outro nome de governabilidade, a ministra entregou-se à abertura da trilha que levaria à porta de incêndio. Reuniu-se com o vice de Renan, o petista Jorge Viana. Franqueou os ouvidos às ponderações do presidente do PSDB, Aécio Neves. Chamou colegas de tribunal ao seu gabinete. Tocou o telefone para outros.

Ao votar na sessão em que o Supremo brindou Renan com um afastamento meia-sola —ficará proibido de substituir o presidente da República, mas permanecerá no comando do Senado— Cármen Lúcia como que resumiu o sentimento que a norteou: "Em benefício do Brasil e da Constituição da qual somos guardiões, neste momento impõe-se de forma muito especial a prudência do Direito e dos magistrados. Estamos tentando reiteradamente atuar no máximo de respeito e observância dos pilares da República e da democracia."

Quatro dos seis ministros que votaram a favor da fórmula que levou Renan a soltar fogos na noite da véspera do julgamento mencionaram razões políticas em seus votos. A manifestação de Luiz Fux beirou o escracho. Ele disse que o Brasil vive uma "anomalia institucional". Acrescentou que o afastamento de Renan seria mais ruinoso que sua permanência. Sem ele, estaria comprometida toda uma agenda nacional que exige deliberação imediata do Congresso.

Ficaram boiando na atmosfera as palavras do relator Marco Aurélio: "Hoje, pensa o leigo que o Senado da República é o senador Renan Calheiros. […] Diz-se que, sem ele, tomado como um salvador da pátria amada, não teremos a aprovação de medidas emergenciais visando combater o mal maior, que é a crise econômico-financeira. […] Quanto poder! Faço justiça ao senador Renan Calheiros. Tempos estranhos os vivenciados nesta sofrida República."

Na sua vez de falar, o procurador-geral da República Rodrigo Janot também borrifou desalento no plenário. Como que antevendo o triunfo de Renan, ele indagou: como compatibilizar a situação do senador "com o princípio da moralidade"? Mais: "Como valorizar o primado das leis e do Estado de Direito com um réu em ação penal à frente da chefia do Estado brasileiro." Pior: "Que mensagem e que exemplo que esse estado de coisas daria para as nossas crianças, adolescentes, brasileiros do povo em geral?"

Quando a posteridade puder falar sem pudores sobre strip-tease que o Supremo Tribunal Federal teve de fazer, sob Cármen Lúcia, para dispensar a Renan Calheiros o tratamento que a moralidade e a Constituição sonegaram a Eduardo Cunha, os livros de história irão realçar: a pretexto de salvar o Brasil do Apocalipse que sobreviria ao afastamento de Renan de uma poltrona que ele só vai ocupar por mais dez dias, o Supremo Tribunal Federal expôs seus glúteos na frente das crianças.

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Sobre o autor

Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.

Sobre o blog

A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.


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