Presidente do STF pede ‘choque de jurisdição’
Josias de Souza
12/01/2017 19h59
Cármen Lúcia, presidente do Supremo Tribunal Federal, reuniu-se em Brasília com os magistrados que comandam os tribunais de Justiça dos Estados. Conversaram sobre o flagelo do sistema prisional brasileiro. Foi um encontro arrastado. Durante cinco horas, a cúpula do Judiciário esbarrou, tropeçou no óbvio. E a maioria dos doutores se deu conta de que precisa parar de fingir que o óbvio é o óbvio. Ei-lo: há nos fundões das cadeias brasileiras um déficit de justiça. Para resolver o problema, Cármen Lúcia propôs um "choque de jurisdição" em matéria penal.
Além de chefiar o Supremo, Cármen Lúcia preside o Conselho Nacional de Justiça. Tanto poder e não consegue responder a uma pergunta trivial: quantos processos penais estão pendentes de julgamento no Brasil? Deu prazo de cinco dias, até terça-feira (17), para que os presidentes de tribunais de Justiça apresentem, "com precisão", a quantidade de processos e de juízes necessários para fazê-los andar.
Cármen Lúcia também não faz ideia do número de brasileiros que estão atrás das grades. Trabalha-se com estimativas que ultrapassam os 620 mil, dos quais 40% são presos provisórios, trancafiados sem julgamento. O CNJ fará um censo penitenciário para contar os hóspedes do inferno, anunciou a ministra.
Simultaneamente, a doutora encomendou aos desembargadores providências para resfriar as cadeias. Deseja um "esforço concentrado" de três meses para retirar da prisão presos que só estão lá porque são muito pobres e não dispõem de advogados para lembrar aos juízes que seus processos foram esquecidos em algum escaninho empoeirado.
Relatórios disponíveis nos arquivos do CNJ informam que já foram detectados atrás das grades brasileiros que esperavam por sentenças há mais de uma década —11 anos num caso descoberto no Espírito Santo; 14 anos num processo paralisado no Ceará. No Piauí, os sem-sentença somam cerca de 70% da população carcerária.
Cármen Lúcia discursou na abertura da reunião. Defendeu, a alturas tantas, um "choque de jurisdição" em matéria penal. "É hora de agir com firmeza e rapidez", declarou, antes de consumar sua rendição ao óbvio. Sem julgamentos rápidos, disse a ministra ao se entregar, a Justiça deixa de ser prestada aos réus, às vítimas e à sociedade.
De fato, o único segmento que ganha com a barbúrdia prisional é o crime organizado. Abandonados pelo Estado, os presos ficam à mercê das facções criminosas. Em troca de supostos favores e de proteção, são compelidos a cumprir ordens da criminalidade mesmo após deixar as cadeias. Potencializa-se a capacidade das facções de promover massacres dentro dos presídios e exportar a violência para as ruas.
O flagelo tem muitos culpados. E o Judiciário não é inocente. A reunião promovida por Cármen Lúcia não precisaria ter durado cinco horas. Bastariam 30 segundos para que a presidente do Supremo anunciasse o óbvio aos desembargadores. Ela diria algo assim: "Senhores, precisamos fazer cumprir nas cadeias do país a Lei de Execuções Penais." E sentenciaria: "Está encerrada a reunião."
Sobre o autor
Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.
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