Odebrecht é menos ética que uma boca de fumo
Josias de Souza
18/04/2017 04h05
José Sarney sabia o que estava dizendo. Pilhado no autogrampo do ex-correligionário Sérgio Machado, o morubixaba do PMDB avisara com quase um ano de antecedência: a delação da turma da Odebrecht produzirá o estrago de uma "metralhadora calibre ponto cem." A rajada de imoralidades, de potência inaudita, atingiu inclusive Sarney, citado em inquérito direcionado à Justiça Federal de Goiás.
A Odebrecht, multinacional da construção, era a vanguarda do capitalismo brasileiro. Por um descuido, a casa caiu. E Marcelo Odebrecht virou bandido. Mas se não tivesse esquecido de maneirar continuaria a ser um menino de ouro. Como poucos, ele sabia ser audaz. Sob seu comando, a empreiteira cresceu extraordinários 520% nos dez anos que antecederam a Lava Jato.
Gente assim, como Marcelo Odebrecht, sempre na fronteira da marginalidade, tanto poderia estar operando no mercado da construção pesada como numa boca de fumo. O comércio de drogas ilícitas e o tráfico de dinheiro comandado pela Odebrecht revelaram-se negócios muito parecidos. A diferença é que há mais ética num ponto de venda de maconha e cocaína do que num escritório da empreiteira.
Quem vai ao pé de um morro para comprar drogas sabe que coloca o seu vício a serviço de uma engrenagem criminosa. Quem comercializa o bagulho não ignora que corre o risco de ser preso. Na boca de grana da Odebrecht, nada era o que parecia. Sob o manto diáfano do sucesso empresarial, rolava grossa corrupção, praticada por gente que se imaginava acima da lei.
O criminoso do morro é protagonista de velhas e reacionárias teses sobre a influência do meio miserável na proliferação da bandidagem. A maior evidência de que a pobreza não produz bandidos é que a imensa maioria dos pobres não rouba, não mata e obedece às leis. Sucede coisa diferente com os executivos da Odebrecht e das empreteiras coirmãs. Essa gente, sim, é um produto do meio.
Marcelo Odebrecht e sua turma são filhos da cultura cleptocrata que vigora no Brasil desde a chegada das caravelas. Assistindo-se à performance dos delatores, nota-se a intenção de todos eles de culpar a sociedade, que praticamente os obrigou a ser o que são, com todas as facilidades que lhes proporcinou —a cegueira da Receita, a impunidade, a cumpilcidade de todo o sistema político…
Tudo conspirava a favor do sucesso da Odebrecht. Não fosse pela intromissão da força tarefa da Lava Jato, que arrombou o departamento de propinas, e pela audácia de Sergio Moro, que enjaulou o príncipe das grandes empreitadas no Moro's Inn, tudo continuaria como antes. Era parte do modelo. Daí o desejo mal disfarçado de Emílio 'Era Tudo Normal' Odebrecht de que o Brasil sinta remorso pelo que fez com seu negócio e se apiede de sua família.
A turma da boca de fumo tem muito a desaprender com os Odebrecht. Não é à toa que tem traficante patrocinando campanhas eleitorais. O negócio é mais lucrativo e bem menos arriscado.
Sobre o autor
Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.
Sobre o blog
A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.