MPF tenta ‘inibir o Supremo’, diz Gilmar Mendes
Josias de Souza
30/08/2017 16h05
O ministro Gilmar Mendes afirmou que o pedido de suspeição que tenta afastá-lo do caso sobre o empresário de ônibus Jacob Barata Filho se baseia "num falso escândalo." Para ele, o real objetivo da iniciativa endossada pelo procurador-geral da República Rodrigo Janot é fazer um "patrulhamento por concessão de habeas corpus." Disse que o Ministério Público quer "botar medo nas pessoas que concedem habeas corpus." Em entrevista ao blog, ele acrescentou: "Na verdade, tentam inibir o Supremo." Não se deu por achado: "A mim não vão inibir!"
Em visita oficial a Bucareste, Gilmar conversou com o blog por telefone. Reiterou que não vê motivos para deixar de atuar no caso —"Sei lá por que Jacob Barata mandou flores em 2015 para Guiomar e para mim!—, desqualificou o procurador-geral —"Janot é mais um legado do petismo"— e previu a revisão da decisão que autorizou a prisão de condenados na segunda instância —"Se você olhar os casos da Lava Jato, as prisões estão começando antes da condenação na primeira instância. Não foi isso que o Supremo decidiu."
Vai abaixo a entrevista:
— Recebeu flores de Jacob Barata Filho? Se fosse adotado esse critério, ninguém poderia julgar ninguém. Você sabe como é a relação em Brasília. Nós convivemos com políticos 24 horas, com a imprensa inclusive. Não poderíamos julgar ninguém. No caso específico, estou absolutamente tranquilo. Nós conhecemos este senhor no dia do casamento [da filha do empresário, Beatriz Barata, com Francisco Feitosa Filho, sobrinho de Guiomar Mendes, mulher do ministro]. Sei lá por que ele mandou flores em 2015 para Guiomar e para mim. Pode ter sido por alguma declaração que eu dei. Não recebo apenas flores, recebo xingamentos também.
— Mantém o entendimento de que sua atuação neste caso não fere o Código de Processo Penal? O que o CPP diz é que precisa ter amizade íntima ou inimizade figadal [para se declarar impedido de julgar]. É isso. O que está acontecendo é um patrulhamento por concessão de habeas corpus. Eles podem ser bem concedidos ou mal concedidos. Isso pode ser discutido. Mas não impedir as pessoas de julgarem. Estão querendo é botar medo nas pessoas que concedem habeas corpus. Isso é uma ameaça à garantia das pessoas. O Ministério Público tentou, naquele pacote das dez medidas, proibir praticamente o habeas corpus. Sou uma voz contra isso.
— E vai continuar? Vou continuar. Não adianta. Espero que amanhã você nunca necessite de um habeas corpus. Mas acha que ia me dar por impedido apenas por conhecer você. Nunca, porque não sou amigo íntimo seu.
— Pretende responder ao pedido de manifestação que a ministra Cármen Lúcia lhe enviou? Claro. Já respondi ao pedido anterior [referente ao habeas corpus que libertou Eike Batista].
— O que dirá? Acompanhei a Guiomar num casamento do sobrinho dela, que teve grande divulgação. Mas eu vou a tantos casamentos em que sou padrinho… E sequer conheço um terço dos outros padrinhos. Se um assessor meu me convida para ser padrinho eu vou. É um tipo de homenagem. E só. Nessa mesma arguição de suspeição eles chegaram a dizer que conheço um outro impetrante, um tal de Lélis [Teixeira, ex-presidente da federação das empresas de ônibus do Rio], porque eu pertencia a um conselho editorial de uma revista chamada Justiça e Cidadania. Participo de conselhos de revistas no mundo inteiro —na Itália, na Alemanha… Não tenho que conhecer as pessoas que estão lá. Se fosse assim, eu não poderia julgar ninguém em Brasília, do mundo político, porque eu conheço a todos. Vou a essas reuniões de políticos e tiro fotos com mulher, com filho, carrego neto no colo. Essa tem sido a minha rotina há muito tempo. No final, às vezes desagradavelmente, eu tenho que julgar. E isso acontece com todos nós no tribunal. Quem disser que é diferente… Alguns mais, outros menos. A não ser o Celso de Mello, que não aceita convite para nada. Mas já caiu numa armadilha: indicaram uma ex-assessora dele para ser advogada do [Cesari] Battisti. E ele teve que se afastar do julgamento. Isso passa a ser uma forma de manipular. Os americanos têm um excesso de cuidado com isso, porque essa é uma forma de manipular a composição da Corte.
— Como se dá a manipulação? Esses dias nós decidimos um caso sobre amianto. E ficou 5 a 4, porque dois estavam impedidos. Quer dizer: se você começar a criar isso… Era o que acontecia em alguns tribunais. Você designa um advogado, bota um filho do cara, para afastar o ministro. Quem tem que se afastar, se for o caso, é o advogado.
— Acha que será um absurdo se a ministra Cármen decidir submeter o pedido de suspeição ao plenário? Nenhum problema. Só que estou te dizendo que a questão não tem nenhuma relevância. É um falso escândalo. A questão é outra. O problema é poder conceder ou não habeas corpus. É só isso. E você sabe muito bem que eu tenho uma visão diferente dessas pessoas em relação à Lava Jato. Não acho que se justifiquem prisões de 70, 80 dias se já quebrou sigilo. Essa é a jurisprudência da nossa turma no Supremo [o ministro integra a Segunda Turma]. A jornalista Eliane Cantanhede me perguntou uma vez: 'Por que seus habeas corpus são só para rico?' Eu disse: damos habeas corpus para ricos e pobres. Mas quem gosta de rico é a imprensa, porque de pobre ninguém fala. Eu estou muito tranquilo em relação a isso. Fui o único ministro do Supremo que fez um movimento para soltar pobres de prisão. Nós liberamos naquele momento 22 mil pessoas no CNJ [Conselho Nacional de Justiça].
— Sua tese é a de que o Ministério Público quer inibi-lo? A mim não vão inibir. Na verdade, tentam inibir o Supremo. Já denunciei que, ao abrir inquéritos contra os ministros Francisco Falcão e Marcelo Navarro, querem inibir o STJ. A mim não vão inibir coisa nenhuma. Você acha que vou deixar de adotar as minhas posições? Também não vão inibir a Segunda Turma, que tem liberado as pessoas. Mas toda vez que você toma uma posição dessas aparece alguma coisa. No dia em que íamos deliberar sobre José Dirceu, eles ofereceram uma nova denúncia contra ele. Esse tipo de prática é autoritária. E vocês têm responsabilidade. A imprensa incentivou. Mas isso vai se desmistificando ao longo do tempo. Estão aparecendo problemas.
— Que problemas? Basta olhar. É que as pessoas estão com poucos olhos críticos. No primeiro embate com uma massa de dinheiro, dois procuradores ficaram no chão. Isso considerando apenas o que a gente sabe. Ainda pode aparecer mais coisas.
— A que procuradores o senhor se refere? O Ângelo Villela, que foi preso, e o Marcello Miller.
— Está se referindo ao caso JBS? Exatamente. Foi a primeira vez que eles enfrentaram uma montanha de dinheiro… E sabe-se lá que cositas más aconteceram.
— Acha que suas divergências com o procurador-geral Rodrigo Janot influenciaram no pedido de suspeição? Não estou nem preocupado. Minha visão dele você conhece. Acho que Janot é mais um legado do petismo. Indicaram um sindicalista para ser procurador-geral da República. Qual é a especialidade do Janot? Você não sabe. É direito constitucional? Não. É direito penal? Não. O maior ponto do currículo dele é ter sido presidente da Associação dos Procuradores. Podiam ter entregue a Procuradoria-Geral ao Vicentinho [deputado federal do PT, ex-sindalista da CUT].
— Ficou surpreso com a repercussão do caso? Não. Toda vez que você trava esse tipo de debate, a gente espera que isso ocorra. Na libertação do Zé Dirceu também teve discussão. Isso é comum.
— Acha que pode ser uma reação à perspectiva de revisão da jurisprudência que autorizou as prisões na segunda instância? Pode ser também. Mas decisão de prender ou não prender em segundo grau não é uma decisão minha, é do tribunal. Precisa de seis, sete votos.
— Mas a hipótese de revisão se materializou a partir de mudança da sua posição sobre a matéria, não? É isso. Mas eu já tinha chamado a atenção para o fato de que a gente tinha autorizado uma permissão de prisão. O que está acontecendo hoje é uma prisão sistemática. Na verdade, está começando antes. Se você olhar os casos da Lava Jato, as prisões estão começando antes da condenação na primeira instância. Se você olhar o Zé Dirceu, desde a prisão preventiva, ficou na cadeia. Marcelo Odebrecht, Gim Argello, Antonio Palocci e coisas do tipo. Então, você já tem até sentença e o cara continua preso. No fundo, o que nós dissemos que era segundo grau transformou-se numa decisão de primeiro grau. Ou até antes disso. Não foi isso que o Supremo decidiu.
— A partir de uma manifestação do Sergio Moro, a ministra Cármen Lúcia disse que não há perspectiva de levar essa questão das prisões ao plenário do Supremo. Acha que o tema voltará à pauta? Não sei. Mas as turmas começam a decidir isso. Não depende do plenário para ser sinalizado.
— Na sua turma, a Segunda Turma, já há uma convicção majoritária neste sentido? Sim, o placar é de 4 a 1.
— Essa maioria de 4 a 1 vai no sentido de que não se deve prender na segunda instância? Sim. Avalia-se que deve ir pelo menos até o STJ.
— Se o tema chegar ao plenário, isso se consolidará como uma jurisprudência? Acho que sim. Mas as turmas já estão discutindo isso. Ontem mesmo o ministro Celso de Mello me mandou uma decisão dele, de anteontem, dizendo isso.
— Ele também liberou um condenado na segunda instância? Exatamente. O caso que eu liberei era cheio de nuances. O problema é que, hoje, não há mais espaço no Brasil para nuances. Direito é nuance, como a vida. O caso que eu liberei recentemente é de uma pessoa que estava com recurso no STJ. Mandaram prendê-la. Só que, no recurso, o próprio Ministério Público se pronunciou para que ela seja colocada em regime aberto. Logo, se ela cumprir a pena, o recurso ficará prejudicado. A rigor, na visão do próprio Ministério Público, ela não tem que ser presa. A vida é muito mais complexa. O que nós dissemos, está claro no meu voto, era que estava permitida a prisão no segundo grau, condicionada à avaliação de cada caso. Não é obrigatório. Mas virou regra geral.
— No pedido de suspeição da Procuradoria, afirma-se que o empresário Jacob Barata Filho é sócio de um irmão de sua mulher, Francisco Feitosa de Albuquerque Lima? É verdade? O pai da Guiomar teve 20 filhos —11 com a mãe dela e nove com outra. Você já imaginou se eu tiver que sair perscrutando negócios de cunhados meus? Até a relação de parentes tem de ser delimitada. Li isso no jornal. Nunca soube disso.
— O senhor não sabia que Jacob Barata tinha negócios com seu cunhado? Não sabia. E nem preciso saber mesmo. O Chico é um grande empresário de ônibus do Ceará. Só isso que eu sei. Nem por isso me dou por impedido em casos de empresas de ônibus.
— No caso do preso Rogério Onofre, que o juiz Marcelo Bretas submeteu ao seu crivo, acha que a segunda ordem de prisão expedida por ele foi correta? Não avalei. Não tenho como avaliar. Vou avaliar quando chegar a mim. O que ele diz é que tinha uma fita em que o sujeito ameaçava outrem. Se tiver, é caso clássico de obstrução de Justiça, em que se justifica a prisão preventiva. Então, vamos examinar. Mas esse não era o fundamento que tinha motivado a primeira decisão.
— É diferente dos casos de Jacob Barata e Lélis Teixeira, que o senhor libertou e o juiz Bretas quis prender novamente? Ele mandou prender o Jacob porque tinha uma ordem anterior em relação a evasão de divisas. Disse que ele carregava mais de 10 mil euros. E, por isso, estava evadindo divisas. Isso, você sabe, os jornalistas ricos da Folha certamente viajam com mais de 10 mil euros.
— Não conheço jornalistas ricos assim. Pois é, mas eu conheço. Então, 10 mil euros é uma piada. Isso não subsiste. É a mesma técnica que a polícia usa para porte de arma. Pega um revólver que você não registrou porque é do seu avô e diz que está com porte de arma vencido. Ou que não tem o porte de arma. É a mesma coisa. Esse foi o fundamento. E o outro era uma ordem de prisão que ele tinha dado, mas não tinha registrado ainda. Uma ordem escondida. Não tem como subsistir. Se um juiz puder ficar escondendo ordem de prisão em relação ao Supremo, para apresentar na hora de cumprir o alvará de soltura, é melhor transferir para eles a supremacia do Supremo.
Sobre o autor
Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.
Sobre o blog
A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.