Se Senado revisar STF abrirá ‘fratura institucional’, declara Ayres Britto
Josias de Souza
03/10/2017 03h57
Ex-presidente do Supremo Tribunal Federal, o jurista Carlos Ayres Britto observa com preocupação os desdobramentos do caso do senador tucano Aécio Neves, que eletrifica as relações entre o Senado e o órgão máximo do Judiciário. Em entrevista ao blog, ele declarou: "O que de pior pode acontecer neste caso é o Senado sustar a eficácia da decisão jurisdicional do Supremo. Os senadores não têm competência legal para isso. Seria inconcebível. Se acontecer, abrirá uma fratura institucional exposta."
Após encontrar-se com a presidente do Supremo, ministra Cármen Lúcia, Eunício Oliveira (PMDB-CE), comandante do Senado, manteve na pauta desta terça-feira a votação sobre Aécio. A maioria dos senadores deseja anular a decisão da Primeira Turma do Supremo, que suspendeu o mandato de Aécio e proibiu o tucano de sair de casa à noite. Para Ayres Britto, a votação não deveria ocorrer, sobretudo depois que o PSDB e o próprio Aécio recorreram, nesta segunda-feira, ao Supremo.
"Ao entrar com mandado de segurança no próprio Supremo, Aécio obriga o Senado a suspender qualquer tipo de deliberação nesta terça-feira", declarou Ayres Britto. "Foi o próprio senador atingido que bateu às portas do Supremo, reconhecendo que cabe ao tribunal dar a última palavra. É mais uma razão para que nesta terça-feira não ocorra deliberação nenhuma por parte do Senado."
Presidente da Suprema Corte na época do julgamento do mensalão, Ayres Britto declara-se otimista com os efeitos da Era Lava Jato. "Creio que o país sairá desse processo repaginado", afirmou. Vai abaixo a entrevista:
— Acha justificável que o Senado desfaça as decisões da Primeira Turma do Supremo sobre Aécio Neves? É inteiramente injustificável. Mas vamos esquecer por um instante o objeto da discussão. Sugiro que nos concentremos no que diz a Constituição em matéria de separação dos Poderes? O artigo 2º diz que são três os Poderes da União, independentes e harmônicos entre si: Legislativo, Executivo e Judiciário. Essa ordem é tão lógica quanto cronológica. Tudo começa com o Legislativo, porque ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. O primeiro princípio regente de toda a administração pública é a legalidade. Tudo começa com a lei. O Executivo, como o nome diz, executa as leis. Para isso, baixa decretos e regulamentos. Tudo na ordem lógica e cronológica. Mas é preciso que haja um Poder que diga se o Legislativo editou as leis de acordo com a Constituição e se o Executivo editou seus decretos e regulamentos de acordo com as leis. Esse Poder é o Judiciário. Tudo afunila para o Judiciário. O Judiciário não governa, mas impede o desgoverno. Isso é lógico, é civilizado. O mundo ocidental democrático se comporta assim.
— A última palavra, em qualquer hipótese, é do Supremo Tribunal Federal? Sim. Quando você olha para o Judiciário, enxerga uma estrutura: os tribunais superiores, os tribunais regionais federais, os tribunais estaduais, o tribunal eleitoral… Todos estão sob a jurisdição última do Supremo. É o Supremo que encima o Judiciário, é ele que está no ápice, no topo do Poder. Você vai ao artigo 102 da Constituição e verifica que está dito lá: compete ao Supremo a guarda da Constituição. Então, quando o Supremo fala, acabou! Quem quiser recorrer, recorre para o próprio Supremo. Há o habeas corpus, o mandado de segurança, embargos de declaração. O jogo consticucional que pode ser praticado numa democracia é esse.
— Ao recorrer ao Supremo Aécio Neves joga o jogo correto, não? Sem nenhuma dúvida. Ao entrar com mandado de segurança no próprio Supremo, Aécio obriga o Senado a suspender qualquer tipo de deliberação nesta terça-feira. Foi o próprio senador atingido que bateu às portas do Supremo, reconhecendo que cabe ao tribunal dar a última palavra. É mais uma razão para que nesta terça-feira não ocorra deliberação nenhuma por parte do Senado.
— Se o Senado levar adiante a ideia de se autoconverter em instância revisora de decisões do Supremo, quais serão as consequências? O que de pior pode acontecer neste caso é o Senado sustar a eficácia da decisão jurisdicional do Supremo. Os senadores não têm competência legal para isso. Seria inconcebível. Se acontecer, abrirá uma fratura institucional exposta.
— Há algum risco de a Primeria Turma ter exorbitado de suas atribuições ao punir Aécio? Não. Basta ler o artigo 102, inciso 1-B. Estabelece que cabe ao Supremo, entre outras coisas, julgar os membros do Congresso Nacional nas infrações penais comuns. Você pode dizer: Ah, por desencargo de consciência, vou verificar as competências do Congresso, enumeradas no artigo 49 da Constituição. Não há neste trecho nada que habilite o Congresso —seja em reunião conjunta, seja em sessões do Senado ou da Câmara— a sustar atos jurisdicionais do Supremo. Não existe isso! Não tem! Nem poderia ter. Do contrário, a Constituição seria incoerente. O Congresso não tem competência para sustar decisões do Supremo.
— A decisão da Primeira Turma do Supremo, tomada por 3 votos a 2, baseou-se no artigo 319 do Código de Processo Penal, que relaciona sanções cautelares 'diversas da prisão', para punir Aécio. Acha que está correto? É preciso deixar claro que a Primeira Turma não incorreu em esquisitice, em bizarrice, em esdruxularia deliberativa. Longe disso. O que a turma fez é perfeitamente cabível do ponto de vista técnico. Não quero dizer com isso que seja uma decisão insuscetível de críticas. Isso é secundário. O que interessa é que a decisão é tecnicamente defensável. Em Direito, apressados comem cru. Não se deve superficializar o debate. Primeiro, é preciso entender o seguinte: quando a Constituição fala em prisão —e fala umas oito ou nove vezes— é prisão entendida como trancafiamento em estabelecimento do Estado, seja uma cela na delegacia de polícia, seja uma penitenciária. Isso é para cumprimento de pena, depois da sentença condenatória. A Constituição não fala em prisão domiciliar, recolhimento em domicílio. O texto constitucional é radical. Quando fala em prisão é no sentido de carceragem.
— Como surgiu o recolhimento domiciliar noturno? Numa lei recente, salvo engano de 2012, os congressistas modificaram o Código de Processo Penal. O artigo 312 do Código Penal estabelece quatro pressupostos para a decretação de prisão preventiva. O que fez o legislador no artigo 319? Ele decidiu suavizar a coisa. Disse: 'vou evitar o encarceramento'. Então, anotou-se no artigo 319 que poderão ser adotadas como medidas cautelares diversas da prisão a suspensão da função pública e o recolhimento domiciliar noturno. Muitos dirão: ah, isso é dourar a pílula, porque recolhimento domiciliar à noite é prisão. Não é! Digo que não é porque a Constituição só considera como prisão o trancafiamento em estabelecimento prisional do Estado. Como se não bastasse, a própria lei, deliberadamente, oferece ao julgador um elenco de medidas diversas da prisão, alternativas à prisão. Não é invencionice. Está escrito na lei aprovada pelo Congresso. Então, a Primeira Turma do Supremo não incorreu em nenhuma esdruxularia interpretativa. Nenhuma!
— Portanto, a aplicação de sanções diversas da prisão, como previsto no Código de Processo Penal, não fere o artigo 53 da Constituição, que prevê a manifestação do Legislativo sobre prisões em flagrante dos parlamentares? Uma coisa não se confunde com a outra. Está claro que um parlamentar não poderá ser preso a não ser em flagrante de crime inafiançável. Quando houver a prisão, nessas circunstâncias, em 24 horas a Casa respectiva —o Senado ou a Câmara— delibera sobre a decisão do Supremo. E pode relaxar a prisão. Isso não muda. Mas no caso que envolve o senador Aécio, não se trata de prisão. Trata-se de recolhimento domiciliar, previsto na lei como medida diversa da prisão.
— Está otimista ou pessimista com os rumos das investigações anticorrupção? A vida nos impõe um visual holístico, sistêmico, equilibrado sobre as coisas. Devemos fugir da visão caolha. Acontece no inconsciente da gente um processo freudiano. Funciona mais ou menos assim: um olho da gente lacrimeja ao ver coisas como a dinheirama do Geddel Vieira Lima, num apartamento de Salvador. Mas o outro olho brilha ao perceber que esses milhões só estavam ali porque os paraísos fiscais, submetidos aos modernos sistemas de controle, deixaram de ser convidativos. Estamos evoluindo. E vamos aprendendo a ver as cisas com um olho na missa e outro no padre. Creio que o país sairá desse processo repaginado.
Sobre o autor
Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.
Sobre o blog
A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.