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Chefão da PF deseja que o país se finja de bobo

Josias de Souza

11/02/2018 03h48

O chefão da Polícia Federal, Fernando Segovia, sinalizou que o inquérito contra Michel Temer no caso dos portos deve ser arquivado, porque "se houve corrupção não se tem notícia ainda de dinheiro de corrupção". Ele declarou também que o delegado que interrogou o presidente por escrito "pode ser repreendido". Ou pior: "Pode até ser suspenso." Dizer que essas declarações são impróprias é pouco. Segovia perdeu o recato. À frente da Operação Abafa a Jato, ele esqueceu de maneirar. É como se pedisse ao país para se fingir de bobo pelo bem de Temer.

No afã de socorrer o presidente, Segovia tornou-se um personagem desconexo. Quando há mala de dinheiro no lance, ele diz que não há corrupção. E lamenta que a investigação tenha sido tisnada pela pressa. Quando ainda não se chegou à grana, ele recomenda o arquivamento apressado —embora não descarte o roubo: "Se houve corrupção…" Nos dois casos, fica-se com a sensação de que a PF é comandada por um detetive que considera inconveniente arriscar a estabilidade do governo por algo tão supérfluo e relativo como a verdade. Melhor combinar que nada aconteceu. E não se fala mais nisso.

Segovia chegou ao topo com o apoio do suspeito José Sarney e o aval do denunciado Eliseu Padilha. Sua posse na direção da PF foi ornamentada com a presença de Temer, o primeiro presidente da história denunciado criminalmente no exercício do mandato. Na sua primeira entrevista, o delegado rasgou, por assim dizer, relatório em que a PF informara ter reunido evidências que apontam, "com vigor", para a participação de Temer nos malfeitos que levaram à filmagem do seu ex-assessor Rodrigo Rocha Loures recebendo propina de R$ 500 mil da JBS.

"Uma única mala talvez não desse toda a materialidade criminosa que a gente necessitaria para resolver se havia ou não crime, quem seriam os partícipes e se haveria ou não corrupção", disse Segovia na ocasião. Criticou a pressa de procuradores e agentes federais. Com razão, sustentou que uma apuração mais lenta e criteriosa levaria aos destinatários finais da mala.

Segovia esqueceu apenas de mencionar um par de detalhes: 1) O interlocutor de Joesley Batista no grampo do Jaburu é Temer; 2) Na conversa, o presidente indicou Rocha Loures como preposto, pessoa de sua mais estrita confiança. De resto, o delagado esquivou-se de anunciar uma providência. Poderia ter dito algo assim: "Farei o que estiver ao meu alcance para que as lacunas da investigação sejam preenchidas."

De repente, o doutor invade novamente o palco para desqualificar o inquérito que pode resultar na terceira denúncia contra Temer. Como se fosse pouco, Segovia achou conveniente ameaçar o delegado responsável pelo inquérito dos portos, Cleyber Malta Lopes. O presidente ficou uma arara com o teor do interrogatório que lhe chegou por escrito. E Segovia tomou-lhe as dores, dispensando ao subordinado um tratamento de criminoso, passível de repreensão ou suspensão.

De fato, o delegado Cleyber precisa se explicar. Cometeu vários crimes. O primeiro foi o de existir. Este poderia ser classificado como um crime menor, uma contravenção tolerável. A coisa tornou-se grave quando, além de existir, o doutor acinou o olfato. Foi ainda mais longe: abriu os olhos. Finalmente, percebeu-se que o investigador da PF, num claro desafio à ordem estabelecida, cometeu um crime imperdoável: investigou.

Para desassossego de Segovia, o delegado Cleyber e sua equipe não estão sozinhos no seu esforço para subverter as regras do jogo. Ganharam a companhia do ministro Luis Roberto Barroso. Relator do inquérito dos Portos no Supremo Tribunal Federal, Barroso intimou o falastrão a prestar esclarecimentos. Em seu despacho, realçou que não considera apropriado que um diretor da PF se manifeste sobre o mérito de um inquérito com diligências por realizar e sem manifestações conclusivas do delegado, da Procuradoria e do próprio ministro-relator.

Barroso determinou a Segovia que leve sua língua na coleira. Novas declarações sobre o caso não serão admitidas, pois o que já foi dito é suficiente para sujeitar o tagarela a processo administrativo ou até penal. Receoso, o mandachuva da PF inaugurou um número novo no palco: em pleno sábado de Carnaval, dançou a coreografia da enganação. Disse que suas declarações foram mal interpretadas. Skindô… E espera que o ministro do Supremo acredite que a culpa é da imprensa. Skindô-skindô…

Segovia e seus padrinhos políticos ainda não notaram. Mas a Lava Jato estreitou-lhes a margem de manobra. Sabe-se que o Planalto se esforça para levar as investigações apenas até o limite do conveniente. Quem já foi recompensado com o congelamento de duas denúncias na Câmara fica tentado a minimizar os problemas: mais uma pantomima, menos uma pantomina… Mas o sentimento de invulnerabilidade não autoriza a suposição de que o Brasil se tornou uma nação de bobos coniventes. Depois da Lava Jato, ficou mais difícil fazer conclamações ao sacrifício patriótico da inteligência.

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Sobre o autor

Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.

Sobre o blog

A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.


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