Juízes ‘explicam' greve sem citar auxilio-moradia
Josias de Souza
15/03/2018 05h19
Juízes federais e trabalhistas realizam nesta quinta-feira uma paralisação. Presidentes de quatro associações de magistrados e de procuradores divulgaram uma nota para explicar o por quê da cruzada de braços. Do preâmbulo ao último parágrafo, o documento mede 1.245 palavras. Quem lê a peça à procura de lógica desperdiça tempo. Nela não há uma mísera menção ao "auxílio-moradia". Ou seja: Os doutores pegam em lanças para salvar o privilégio, mas têm vergonha de chamá-lo pelo nome.
A nota oficial pode ser lida aqui. No item de número 9, está escrito: "Deve o cidadão se indagar porque todos os ataques midiáticos às magistraturas, e bem assim os esforços para submetê-las a uma progressiva asfixia, ocorrem justamente neste momento histórico, quando se intensificam as operações de combate à corrupção ─em sua imensa maioria operadas pelas magistraturas federais…"
Nesse trecho, o que os doutores sustentam, com outras palavras, é o seguinte: a imprensa critica os juízes porque eles combatem ardorosamente a corrupção. Tolice. Excetuando-se os corruptos e simpatizantes, todos os brasileiros aplaudem a Lava Jato e operações assemelhadas. O que ninguém tolera é o esforço que juízes e procuradores realizam para transformar uma agenda sindical num processo de autodesmoralização.
Alega-se que as corporações têm "direito" a um auxílio-moradia de R$ 4.377, livre de impostos. Argumenta-se que o privilégio está na lei. Conversa fiada. A lei diz que, além dos vencimentos, "poderão" ser concedidas vantagens aos magistrados. Essa "possibilidade" virou direito adquirido graças a uma liminar do ministro Luiz Fux, do STF. Coisa de 2014. O julgamento do mérito estava há mais de três anos no depósito de assuntos pendentes do Supremo.
De repente, Cármen Lúcia, a presidente do Supremo Tribunal Federal, marcou para 22 de março o julgamento que pode extinguir o auxílio-moradia. Em resposta, a corporação aprovou a paralisação desta quinta-feira. O suicídio é uma coisa íntima. Mas alguém precisa tentar impedir que os magistrados atirem contra a própria imagem. Daí os alertas da imprensa que conserva o bom hábito de imprensar.
Auxílio-moradia faz sentido quando o magistrado é transferido para outra cidade. Vira tunga quando o juiz tem casa na cidade onde trabalha. Estão nessa situação, por exemplo, os honoráveis juízes da Lava Jato Marcelo Bretas e Sérgio Moro. Ambos têm belas residências —um no Rio, outro em Curitiba.
Argumenta-se que o privilégio serve como um complemento salarial, pois os contracheques acumulam defasagem de 40% desde 2015. Tudo bem. Se é assim, os doutores deveriam guerrear por reajustes salariais, não pela preservação dos puxadinhos no contracheque. E terão de explicar por que algo como sete em cada dez juízes recebem vencimentos acima do teto constitucional de R$ 33,7 mil —não raro acima dos R$ 100 mil.
Uma coisa é certa: se magistrados e procuradores desperdiçarem os recursos de suas associações numa cruzada para convencer todo mundo de que uma excrecência é direito adquirido, ela acabará assumindo a forma de salário. Embora continue sendo apenas uma excrescência.
Sobre o autor
Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.
Sobre o blog
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