A última do Temer: vacina depois da septicemia
Josias de Souza
13/08/2018 16h35
Crivado de denúncias e inquéritos, Michel Temer governa com medo da própria sombra. Nesta segunda-feira, inventou uma reunião televisiva, com transmissão ao vivo pelos canais do governo. Juntou numa sala ministros, chefes de agências reguladoras e executivos de concessionárias para discutir um decreto sobre a relicitação de concessões de rodovias federais à iniciativa privada. Disse ter convidado as câmeras "para que fique claro, transparente e límpido, que a assinatura se deveu a fatos governamentais que têm o maior significado e não ao desejo ilícito de favorecer à empresa tal ou qual."
O surto de transparência de Temer ocorre num instante em que a Polícia Federal investiga o caso do decreto dos portos, editado em 2017. Apura-se a suspeita de que o presidente favoreceu empresas portuárias em troca de propinas. Os investigadores já apalparam os dados bancários e tributários de Temer; viraram do avesso suas relações com o amigo e suposto operador João Baptista Lima, o coronel Lima; esquadrinharam aquisições e reformas de imóveis da família Temer… Na abertura da reunião-espetáculo, o presidente fez referências indiretas à encrenca dos portos. Tentou vender a ideia de que a burocracia estatal imuniza o presidente contra os malfeitos na edição de decretos.
Temer declarou: "Muitas vezes, eu verifico que decretos por mim assinados, que foram objeto de estudos preliminares e dos quais tomo conhecimento muitas vezes apenas no dia para ser assinado ou uma semana depois, o que se alega é que o presidente da República quis beneficiar uma ou outra empresa. E isso, meus senhores, gera procedimentos investigativos que alcançam cinco ou seis mil páginas para revelar o óbvio: ou seja, que durante muito tempo se deu todo um processo, um caminho administrativo, para chegar ao presidente da República."
Para reforçar o raciocínio, Temer alegou que a assinatura de um decreto é precedida de minuciosas análises técnicas: "Às vezes, aqui, nós praticamos atos que são objeto de estudos pelos vários ministérios, com a presença de membros da sociedade civil, com atas estabelecidas. E quando chega ao presidente, no geral, chega uma semana antes da assinatura, ou, quando não, chega no dia. Este é o processo natural de todo e qualquer ato administrativo. Não se pode ter a ilusão de que, num dado momento, o presidente da República redige um decreto, assina esse decreto e manda publicar. Isso não existe."
A vacina da transparência chegou tarde demais para Michel Temer. Impossível imunizar um governo que manteve a corrupção no estágio da infecção generalizada. Temer teve três oportunidades para evitar a septicemia. Perdeu a primeira chance quando deixou de nomear um ministério moralmente sustentável. Perdeu a segunda chance quando se absteve de demitir os auxiliares denunciados. Perdeu a terceira e última chance quando preferiu comprar o congelamento de denúncias criminais na Câmara em vez de permitir que o Supremo analisasse a consistências das acusações da Procuradoria.
Em plena era do dinheiro transportado em malas, reuniões teatrais não oferecem a garantia de transparência. Todo governante pilhado no contrapé recorre ao lero-lero segundo o qual os mecanismos de controle do Estado impedem o crime. Na Petrobras, por exemplo, a roubalheira foi tão profunda que alcançou uma espécie de camada do pré-sal da corrupção. Contudo, a despeito de todas as evidências, Lula e Dilma Rousseff diziam que os contratos imundos firmados com as empreiteiras eram limpinhos porque haviam passado pelo crivo do Conselho de Administração da estatal.
No caso dos decretos de Temer, a revisão final é feita na Casa Civil da Presidência da República. Ali, quem comanda o espetáculo é o ministro Eliseu Padilha, companheiro de Temer em inquéritos e denúncias. Mas o presidente pede ao Brasil que se finja de bobo e acredite que seu governo está imune à safadeza. Não é à toa que oito em cada dez brasileiros desejam ver o presidente pelas costas. Convém ficar de olho no novo decreto.
Sobre o autor
Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.
Sobre o blog
A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.