ONU pede que Brasil rasgue suas leis por Lula
Josias de Souza
17/08/2018 16h46
Colecionadora de derrotas nos tribunais brasileiros, a defesa de Lula obteve uma vitória no Comitê de Direitos Humanos da ONU. Em comunicado divulgado nesta sexta-feira, o órgão anotou que "pediu que o Brasil tome todas as medidas necessárias para garantir que Lula possa usufruir e exercitar seus direitos políticos enquanto está na prisão, como um candidato nas eleições presidenciais de 2018″.
Na prática, o comitê da ONU pediu, com outras palavras, o seguinte: "Brasil, mande às favas as decisões judiciais adotadas contra Lula —da primeira à quarta instância. Em seguida, rasgue a legislação para permitir que um preso inelegível dispute a honorável posição de presidente da República." Tais providências transformariam o Brasil numa republiqueta. Mas o órgão da ONU está pouco se lixando.
Deve-se a novidade a um pedido feito pela defesa de Lula ao comitê da ONU em 27 de julho. Sem ouvir o Estado brasileiro, os responsáveis pela recomendação concluíram que Lula deve ter: "acesso apropriado à imprensa e a integrantes de seu partido político". E não pode ser impedido de "concorrer às eleições presidenciais de 2018 até que todos os recursos pendentes de revisão contra sua condenação sejam completados em um procedimento justo e que a condenação seja final".
A decisão chega num instante em que o Tribunal Superior Eleitoral se prepara para julgar o pedido de registro da candidatura presidencial de Lula. São grandes, muito grandes, enormes as chances de o presidiário petista ser enquadrado no artigo da Lei da Ficha Limpa que proíbe condenados em segunda instância de concorrer a cargos eletivos. O comitê da ONU não está nem aí para a legislação do Brasil.
Diz o comunicado oficial que "o comitê, agindo pelos relatores especiais (…) tomou nota das alegações do autor (Lula) e concluiu que os fatos apresentados indicam a a existência de possível dano irreparável aos direitos do autor sob o artigo 25 da convenção" do Pacto de Direitos Civis da ONU. O que diz esse artigo? Todos têm o direito "de votar e ser eleito em eleições genuínas que devem ser universais e em sufrágio igual conduzidas por voto secreto, garantindo a livre expressão dos eleitores".
Mas, afinal, qual é a posição dos sábios da ONU sobre o mérito do processo contra Lula? Ouvido pela BBC, o órgão de direitos humanos informou: "Este pedido não significa que o Comitê tenha encontrado uma violação (contra Lula) ainda –é uma medida urgente para preservar o direito de Lula, enquanto se aguarda a consideração do caso sobre o mérito, que acontecerá no próximo ano."
Quer dizer: guiando-se pela argumentação dos advogados de Lula, os doutores da ONU avaliaram que Lula corre o risco de sofrer "possível dano irreparável". Mas reconhecem que ainda não foi detectada uma "violação". E informam que só no ano de 2019 analisarão o mérito do processo em que o pajé do PT foi condenado a 12 anos e um mês de cadeia por corrupção e lavagem de dinheiro. Ai, ai, ai…
Com todo o respeito que o Comitê dos Direitos Humanos da ONU merece, a decisão anunciada nesta sexta-feira é ofensiva. Ofende o Estado Democrático de Direito ao dar ouvidos aos advogados de Lula sem oferecer ao Brasil a oportunidade de exercer a sacrossanta prerrogativa do contraditório. Ofende a inteligência alheia ao colocar os hipotéticos direitos do presidiário acima do direito da sociedade brasileira a um processo eleitoral moralmente sustentável.
Exultantes, Cristiano Zanin e Valeska Teixeira Zanin Martins, advogados de Lula, apressaram-se em divulgar uma nota. Nela, atribuíram à recomendação do comitê da ONU ares de decisão indiscutível e imutável.
Eis o que escreveram os defensores de Lula: "Diante dessa nova decisão, nenhum órgão do Estado brasileiro poderá apresentar qualquer obstáculo para que o ex-presidente Lula possa concorrer nas eleições presidenciais de 2018 até a existência de decisão transitada em julgado em um processo justo, assim como será necessário franquear a ele acesso irrestrito à imprensa e aos membros de coligação política durante a campanha."
Curioso, muito curioso, curiosíssimo. A banca comandada por Cristiano e Valeska questiona até as vírgulas dos acórdãos do Supremo Tribunal Federal contra Lula. Tomada pelos métodos de trabalho, a dupla pratica uma advocacia muito parecida com uma guerrilha judicial. Por vezes, a defesa de Lula roça a chicana. Mas Cristiano e Valeska pedem ao Brasil que se finja de bobo e trate uma recomendação de um órgão da ONU como um imperativo celestial.
Os advogados do preso petista levam suas queixas ao Comitê de Direitos Humanos da ONU desde 2016. Acusam Sergio Moro de promover uma perseguição implacável a um político irrepreensível. Se fizessem uma análise superficial, os companheiros da ONU verificariam que, em dois anos, os perseguidores de Lula se converteram num pequeno exército. O grupo cresce na proporção direta das descobertas sobre os malfeitos da divindade petista.
Protagonista de oito processos, cinco dos quais já convertidos em ações penais, o presidenciável petista tem no seu encalço investigadores da Polícia Federal, auditores da Receita Federal, procuradores da República de Curitiba e de Brasília, magistrados lotados nas duas praças, delatores em profusão e repórteres golpistas…
Mais recentemente, os perseguidores começaram a surgir às pencas, na forma de colegiados: os três desembargadores da Oitava Turma do TRF-4, que elevaram a pena de 9 anos para 12 anos; os cinco ministros da Quinta Turma do STJ, que negaram o habeas corpus preventivo; a maioria de 6 a 5 que avalizou, no plenário do Supremo, o encarceramento do condenado. Vem aí o plenário do TSE, que está na bica de enquadrar o ficha-suja na lei que exige dos candidatos prontuários limpos.
A decisão da ONU tem grande peso político. Mas não é um imperativo legal. Embora seja signatário do pacto que orientou o comitê, o Brasil não é obrigado a obedecer cegamente a um conjunto de recomendações míopes. Ignorando a decisão, o país decerto sofrerá um desgaste. Mas nada supera a corrosão a que seria submetido o processo eleitoral brasileiro se um corrupto de segundo grau fosse tratado como um candidato limpinho. Um comitê da ONU não pode rasgar a legislação brasileira.
Sobre o autor
Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.
Sobre o blog
A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.