Bolsonaro não notou, mas o vice pode ser versa
Josias de Souza
28/09/2018 19h54
Em entrevista ao apresentador Datena, Bolsonaro deu a entender que falou grosso com Mourão, o número dois de sua chapa. "Falei, sim, para ele ficar quieto. Afinal de contas, está atrapalhando realmente". O capitão reproduziu os termos supostamente utilizados no enquadramento: "Daqui para frente, general, com todo respeito, o senhor não fala mais nada." Não foi a primeira vez que o cabeça de chapa ralhou com seu vice. Não será a última, pois Mourão não consegue conter a língua nos limites geográficos de sua boca.
No penúltimo surto de logorreia, Mourão criticou o décimo-terceiro salário e o abono de férias. Na conversa com Datena, Bolsonaro lamentou: "O vice geralmente não apita nada, mas atrapalha muito". Não apita nada?!? Engano. Em condições normais, vices são como ciprestes: só crescem à beira dos túmulos. Mas no Brasil eles costumam desabrochar mesmo sem a emissão do atestado de óbito do titular. Se o presidente é um vivo pouco militante —como Dilma, por exemplo— o vice ajuda a providenciar as flores, a pá de cal e os 342 votos para o impeachment.
Desde a redemocratização, o voto direto elegeu quatro presidentes no Brasil: Collor, FHC, Lula e Dilma. Dois foram enviados para casa mais cedo. Ou seja, a taxa de sucesso do apito é de 50%. Bolsonaro ainda não percebeu, mas a história ensina que, nesta terra de palmeiras e sabiás, um vice pode virar versa a qualquer momento.
O risco aumenta quando o titular do cargo de presidente flerta com a ideia de substituir as regras pela criatividade. Bolsonaro voltou a flertar com a ideia de contestar o resultado das urnas na hipótese de ser derrotado. "Não posso falar pelos comandantes [militares]. Pelo que vejo nas ruas, não aceito resultado diferente da minha eleição", declarou. Ora, ora, ora…
Suponha que as urnas de 2018 sorriam para o capitão. Nada impede que o general-vice converta o Jaburu numa trincheira do "autogolpe", tendo o versa como beneficiário. Quem com Mourão fere com Mourão pode se ferir.
Sobre o autor
Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.
Sobre o blog
A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.