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Trilha sindical de Raquel Dodge conduz ao brejo

Josias de Souza

01/12/2018 04h26

Ao recorrer ao Supremo para que os procuradores continuem recebendo o bolsa-moradia de R$ 4,3 mil por mês, a procuradora-geral da República Raquel Dodge enveredou por uma trilha que leva a instituição sob seu comando para o lodo. Insurgiu-se contra decisão do ministro Luiz Fux, que revogou o pagamento do privilégio para todas as carreiras jurídicas. Alegou que a revogação só vale para juízes, não para procuradores. Tomou o caminho do brejo ao menosprezar as leis e, sobretudo, a Constituição. .

Escreveu Raquel Dodge em seu recurso: "Sem adentrar propriamente no mérito, na legalidade ou na constitucionalidade do recebimento de auxílio-moradia, fato é que esta ação restringe-se ao pagamento ou não do benefício em causa para os juízes, nos termos da legislação que rege a magistratura judicial brasileira, limitando-se o julgado àquelas carreiras."

A doutora pode não ter notado. Mas seu raciocínio é assustador e desmoralizante. Assusta porque quem a admira por seu esforço para salvar o país da corrupção não esperava vê-la enrolada na bandeira da salvação da conta bancária da corporação. Desmoraliza porque não fica bem para a zeladora da ética e dos bons costumes dar de ombros para a moralidade.

O benefício reivindicado por Raquel Dodge só faz sentido nos casos em que o procurador é transferido para outra cidade. A coisa virou escárnio em 2014, quando uma liminar concedida por Fux estendeu o bolsa-residência para todos os magistrados e procuradores —até mesmo os que trabalham na sua cidade, morando em casas próprias.

Na prática, o que deveria ser uma excepcionalidade tornou-se uma vulgaridade. O bolsa-descalabro virou puxadinho do contracheque —livre de impostos. Encostado na precariedade de uma decisão liminar (provisória) e monocrática (individual), vigorou por quatro anos. E não se viu nenhuma queixa dos procuradores por receber o mesmo mimo e o mesmo tratamento dispensado aos juízes.

Esquecido por conveniência, esse privilégio remuneratório voltou à cena no meio de um balé de elefantes, no qual a cúpula do Supremo executou uma coreografia de toma-lá-dá-cá em parceria com Michel Temer. Trocou-se a liminar do bolsa-tunga pelo aval do presidente a um reajuste de 16,38% para os ministros da Suprema Corte e para a procuradora-geral —com direito a efeito cascata orçado em R$ 4 bilhões.

Até ontem, quando se estava numa reunião ou numa roda de amigos e alguém falava em corrupção, era inútil tentar mudar de assunto. Podia-se, no máximo, mudar de corrupto. Ao reivindicar o restabelecimento do bolsa-moradia "sem adentrar propriamente no mérito, na legalidade ou na constitucionalidade do recebimento", Raquel Dodge como que se oferece como assunto alternativo. Nessa batida, a viagem da Procuradoria em direção ao brejo logo será tema obrigatório nas esquinas e nos botecos.

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Sobre o autor

Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.

Sobre o blog

A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.


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