Brando com corruptos, Temer é duro com Battisti
Josias de Souza
14/12/2018 20h30
Quando o assunto é cadeia, Michel Temer vira um presidente paradoxal. Denunciado duas vezes (corrupção passiva e obstrução de justiça), investigado em outros dois inquéritos (corrupção e lavagem de dinheiro), Temer pega em lanças no Supremo pela prerrogativa de livrar corruptos da cadeia. Com o mesmo ímpeto, ele guerreia pelo direito de extraditar o condenado Cesari Battisti para um cárcere na Itália.
Para devolver o meio-fio aos corruptos brasileiros, Temer capricha na generosidade, dispondo-se a perdoar-lhes 80% das penas e 100% das multas. Para passar o condenado Battisti na tranca, Temer torna-se um ser draconiano, dando de ombros para a alegação de que o condenado não poderia ser devolvido ao seu país porque casou-se com uma brasileira e teve um filho com ela.
Ironicamente, a Itália aproveitou-se da presença de um corrupto brasileiro em seu território para dar uma lição institucional ao Brasil. A coisa aconteceu em 2015. O petista Henrique Pizzolato, mensaleiro condenado pelo Supremo a 12 anos e 7 meses de cana dura, fugira para a Itália, tornando-se uma espécie de Battisti com o sinal trocado.
Preso, Pizzolato recorreu à Justiça italiana para não ser extraditado. Embora dispusessem de amparo legal para se vingar do desaforo sofrido cinco anos antes com a não-extradição de Cesare Battisti, as autoridades italianas preferiram fazer justiça, devolvendo Pizzolatto ao Brasil.
Brasil e Itália firmaram um tratado de extradição em 1989. A peça prevê que os dois países devem devolver um ao outro pessoas que estejam em seus territórios e que sejam procuradas pelas autoridades judiciais para responder a processo penal ou cumprir pena de prisão já definida em sentença. Entretanto, o documento abre uma exceção.
O tratado anota que Brasil e Itália podem optar pela "recusa facultativa da extradição" quando a pessoa procurada for um nacional. Era o caso de Pizzolato. Dono de dupla cidadania, o condenado ostentava, à luz da lei, tanto a condição de italiano quanto a de brasileiro. Ou seja: se quisesse, a Itália poderia reter Pizzolato. E ninguém teria nada com isso.
A tramitação dos casos Battisti e Pizzolato foi parecida. Em ambos a instância máxima do Judiciário dos dois países deferiu a extradição, transferindo a palavra final para as instâncias administrativas. Nesse estágio, os processos ganham contornos políticos.
No episódio envolvendo Battisti, condenado a prisão perpétua por ter passado nas armas quatro pessoas na década de 70, Lula deu de ombros para a decisão do Supremo. Sem cidadania brasileira, Battisti foi premiado com o status de refugiado político. Lula tratou aceitou o argumento de que o condenado correria risco de morrer se fosse devolvido ao seu país. Tratou o regime democrático da Itália como se fosse uma ditadura de quinta categoria.
Deu-se o oposto no caso de Pizzolato. Embora o condenado fosse um nacional, a Itália refugou a alegação de que o julgamento da Suprema Corte brasileira tivera conotação política. E aceitou sem pestanejar as garantias oferecidas pelo Estado brasileiro de que zelaria pela integridade física do preso.
Ao extraditar Pizzolato, a Itália dispensou ao Brasil um respeito que não obtivera no caso de Battisti. De resto, rendeu homenagens a um velho brocardo: a justiça começa em casa. E a casa do hipotético italiano Pizzolato era uma prisão no Brasil. Ele cumpriu o seu castigo na penitenciária da Papuda, em Brasília. Hoje, beneficiado pela progressão do regime, está solto.
Desde o ano passado, Temer pedia ao Supremo que reconhecesse o seu "direito" de extraditar Battisti. Alegou que o refúgio concedido por Lula, em 2010, não é um ato "insindicável", como sustentam os advogados do italiano.
Por meio da Advocacia Geral da União, Temer argumentou: "Ora, tratando-se a extradição de ato eminentemente político, com ampla carga de discricionariedade, em que há liberdade de decisão e flexibilidade diante do caso concreto, atentando-se aos interesses e ao cumprimento dos tratados internacionais, 'é notória a possibilidade de revisão [da decisão de Lula], eis que as circunstâncias justificadoras da não entrega do extraditando podem ser alteradas com o passar do tempo e, dessa forma, possibilitar uma nova avaliação do Estado requerido'."
Relator da matéria, o ministro Luiz Fux, concedera em outubro de 2017 uma liminar pedida pela defesa de Battisti para bloquear, preventivamente, eventual decisão de Temer relacionada à extradição. Mas Fux revogou a liminar, ordenando a prisão de Battisti, que está foragido. E Temer, com a rapidez de um raio, editou o decreto de extradição.
A defesa de Battisti renovou na Suprema Corte os seus antigos argumentos. Alega-se que, afora a suposta impossibilidade de revisão do refúgio concedido por Lula, sua devolução à Itália seria inviável porque ele se casou com uma brasileira. Da união, resultou o nascimento de um filho, cujo sustento dependeria de sua permanência no país. Temer não se sensibilizou com a argumentação.
"…Não basta por si só, a contração de matrimônio e o reconhecimento de prole", anotou a AGU em peça protocolada no Supremo em nome do presidente. "…Importante frisar, nesse ponto, que tais excludentes só se aplicam ao instituto da expulsão, não sendo extensíveis à extradição, entendimento este pacífico no âmbito do Supremo Tribunal Federal, que já editou o enunciado sumular nº 421, o qual dispõe que 'não impede a extradição a circunstância de ser o extraditando casado com brasileira ou ter filho brasileiro'."
Ao decretar a extradição de Battisti, Temer se antecipa a Jair Bolsonaro, que vinha deixando claro desde a campanha seu propósito de embrulhar o condenado para presente, enviando-o para Roma. A defesa de Battisti pede que a decisão monocrática (individual) de Luiz Fux seja submetida ao plenário do Supremo. O problema é que haverá apenas mais uma sessão antes do início do recesso do Judiciário.
Os ministros da Suprema Corte se reunirão pela última vez em 2018 na próxima quarta-feira. A exemplo dos advogados de Battisti, Temer também reivindica que os ministros concluam nesse dia o julgamento sobre a legalidade do decreto de indulto que editou no ano passado.
Iniciado há três semanas, o julgamento sobre o indulto foi interrompido por dois pedidos de vista —de Luiz Fux e de Dias Toffoli. A interrupção ocorreu num instante em que já havia se formado maioria de seis votos a favor da seguinte tese: o decreto de indulto é um ato discricionário do presidente da República. Mantido esse entendimento, Temer poderia, sim, incluir os corruptos no rol dos beneficiários da clemência.
A pauta do plenário do Supremo ainda não foi anunciada. Mas seria divertido, muito divertido, divertidíssimo se a Corte incluísse os dois casos na derradeira sessão do ano, a última antes dos término do governo Temer. Exibidas assim, numa mesma sessão, as duas faces de Temer —a benevolente para os corruptos e a draconiana para Battisti—virariam matéria prima para valiosos estudos sociológicos. Ou psiquiátricos.
Sobre o autor
Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.
Sobre o blog
A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.