Ausência do PT na posse será autossabotagem
Josias de Souza
29/12/2018 05h09
Nada é mais íntimo do que o suicídio. A tentativa de impedir a consumação do ato pode ser entendida como uma interferência no direito de ir e vir —ou pelo menos de ir. Entretanto, já que os velhos aliados não se mexem, alguém precisa avisar ao Partido dos Trabalhadores que seu comportamento é suicida. A legenda decidiu boicotar a posse de Jair Bolsonaro. Ou seja, não bastasse ter pulado no buraco em que se encontra, o PT começou a jogar terra em cima de si mesmo.
Entre outros motivos, o PT alega que o "golpe do impeachment" de Dilma e a "proibição ilegal" da candidatura de Lula comprometeram a "lisura do processo eleitoral de 2018". As alegações são tolas e ofensivas. O petismo se agarra à tolice ao insistir na tática da vitimização. Ofende a inteligência alheia ao tratar a aplicação das leis como suposta evidência de ilegalidades.
Dilma foi deposta num processo que começou na Câmara com rito avalizado pelo Supremo. E terminou no Senado, em sessão comandada pelo então presidente da Corte, ministro Ricardo Lewandowski. De ilegal, apenas a manobra inconstitucional que preservou os direitos políticos da deposta. Algo que o eleitor mineiro corrigiu ao condenar Dilma à função de cuidadora dos netos, sonegando-lhe o mandato de senadora.
Quanto a Lula, ele teve a candidatura barrada porque virou um corrupto de segunda instância. Ao contrário do que sustenta o PT desde a campanha, eleição sem Lula não foi uma fraude, mas um bom começo. Urnas servem para contar votos, não para fornecer habeas corpus para presidiários condenados por corrupção e lavagem de dinheiro. A exclusão de um ficha-suja da corrida sucessória emitiu um raro sinal de vitalidade institucional.
"O resultado das urnas é fato consumado", reconheceu o PT na nota em que avisou sobre o boicote à posse. "Mas não representa aval a um governo autoritário, antipopular e antipatriótico, marcado por abertas posições racistas e misóginas, declaradamente vinculado a um programa de retrocessos civilizatórios." Nesse ponto, os argumentos flertam com a inutilidade e a cegueira.
Ora, se a vitória de Bolsonaro "é fato consumado" o boicote à cerimônia de posse é algo que tem a utilidade de uma estudantada. Esse tipo de coisa, quando praticada por jovens estudantes, traz o aroma e o frescor da juventude. Mas quando os protagonistas são velhos com mentalidade juvenil o destemor cheira a ferrugem.
O PT envernizou a vitória de Bolsonaro ao registrar a candidatura-estepe de Fernando Haddad. Valorizou-lhe o triunfo ao guerrear no tira-teima do segundo turno. Mas a grandeza da vista curta impede que os companheiros enxerguem o óbvio: o "aval" do PT tornou-se um asterisco depois que 57 milhões de brasileiros optaram por "um governo autoritário, antipopular e antipatriótico, marcado por abertas posições racistas e misóginas…"
A alturas tantas, a nota que oficializou o boicote registra: "O ódio do presidente eleito contra o PT, os movimentos populares e o ex-presidente Lula é expressão de um projeto que, tomando de assalto as instituições, pretende impor um Estado policial e rasgar as conquistas históricas do povo brasileiro." Aqui, há uma dose de confusão e muita inabilidade na escolha das palavras.
O PT revela-se confuso ao tropeçar na evidência de que Bolsonaro não fez senão ecoar um antipetismo que, por majoritário, tornou-se a mais pujante força política da temporada eleitoral de 2018. Só a dificuldade no manuseio do vernáculo pode explicar que o partido do mensalão e do petrolão considere uma boa ideia acusar alguém de "tomar de assalto as instituições."
Nesse ritmo, o PSDB vai acabar processando o PT por plágio. Na sucessão de 2014, após perder para Dilma Rousseff, Aécio Neves liderou um boicote do tucanato à posse da ex-gerentona de Lula. O tempo passou. Aécio e Cia. juntaram-se aos rivais petistas no caldeirão de lama. E a candidatura presidencial do tucano Geraldo Alckmin amargou um humilhante quarto lugar na sucessão de 2018.
No velho ensinamento de Churchill, a democracia é o pior regime imaginável com exceção de todos os outros. Se o governo de Bolsonaro for um fiasco, o eleitor buscará alternativas. A exemplo do PSDB, o PT faz um esforço extraordinário para se excluir do leque de opções.
Ao ausentar-se da posse, o PT tenta passar a ideia de que há seres intoleráveis na política, mas eles estão todos em outras legendas. É como se o petismo desqualificasse não Bolsonaro, mas os seus 57 milhões de eleitores. O problema é que, se a disputa de 2018 demonstrou alguma coisa, foi que o eleitorado brasileiro cansou de fazer papel de bobo.
Na prática, a ausência dos petistas na posse terá o efeito não de um boicote, mas de uma autossabotagem. O que não deixa de ser uma modalidade de suicídio —mesmo que no formato de um desafio à própria sorte. São tantos os desafios que o PT lança contra si mesmo que a coisa já virou uma roleta russa. Cedo ou tarde o PT vai acabar acertando.
Errata: diferentemente do que informou a primeira versão deste post, Geraldo Alckmin (PSDB) ficou em quarto lugar na eleição presidencial de 2018. A informação foi corrigida.
Sobre o autor
Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.
Sobre o blog
A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.