Moro está preso numa bolha das redes sociais
Josias de Souza
01/03/2019 04h48
Em dezembro, dias antes de se alistar na tropa ministerial de Jair Bolsonaro, Sergio Moro declarou: "Eu não assumiria um papel de ministro da Justiça com o risco de comprometer a minha biografia, o meu histórico." Jactava-se de ter recebido do presidente uma "carta branca". De duas, uma: ou Moro é daltônico ou fez uma opção preferencial pela antoenganação. A carta que recebeu do capitão nada tem de branca.
Ao desnomear a especialista em segurança pública Ilona Szabó um dia depois de tê-la acomodado numa suplência do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, Moro ficou em situação muito parecida com a de uma personagem de ficção criada pelo escritor gaúcho Josué Guimarães —uma mulher que diminuía diariamente de tamanho.
Consternados, os familiares da mulher da literatura esforçavam-se para que ela não percebesse o próprio encolhimento. Rebaixavam os móveis, serravam os pés de mesas e cadeiras. Inclementes, Bolsonaro e seu clã fazem o oposto. Rebaixam Moro à vista de todo mundo sem adaptar a mobília.
Ilona Szabó foi dispensada porque sua nomeação foi mal recebida na bolha habitada pelos apoiadores de Bolsonaro nas redes sociais. Pressionado pelo próprio presidente, o portador da carta hipoteticamente branca retraiu-se. A nota que redigiu para anunciar o inacreditável, descerá à crônica do poder brasiliense como uma peça do realismo fantástico. Ficou entendido que Ilona Szabó foi privada de atuar como conselheira do Estado por excesso de qualificação.
Moro escreveu que a escolha de Ilona "foi motivada pelos relevantes conhecimentos da nomeada na área de segurança pública e igualmente pela notoriedade e qualidade dos serviços prestados pelo Instituto Igarapé", que ela dirige. E tentou exlicar-se, sem sucesso: "Diante da repercussão negativa em alguns segmentos, optou-se por revogar a nomeação, o que foi previamente comunicado à nomeada e a quem o ministério respeitosamente apresenta escusas."
Ouvida, Ilona Szabó contou: "O ministro me pediu desculpas. Disse que ele lamentava, mas estava sendo pressionado, porque o presidente Bolsonaro não sustentava a escolha na base dele." A desnomeação, por inusitada, produziu uma segunda baixa no Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária. Renato Sérgio de Lima, diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, exonerou-se em solidariedade.
O deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), o 'Zero Três' da prole presidencial, apressou-se em acentuar o apequenamento de Moro. Fez isso ao se incorporar ao pelotão de fuzilamento das redes. O filho do presidente puxou o gatilho no Twitter: "Após exoneração de Ilana Szabó outro que era contra o projeto anticrime de Moro pede para sair. O desarmamentista Renato Sérgio de Lima, do Conselho Nacional de Segurança Pública e Defesa Social, dispensou-se em solidariedade a Szabó. #grandedia."
Eduardo foi ecoado no Twitter pelo "Zero Um", o senador Flávio 'Coaf' Bolsonaro: "Meu ponto de vista é: como essa Ilana Szabó aceita fazer parte do governo Bolsonaro? É muita cara de pau, junto com uma vontade louca de sabotar, só pode." O que o primogênito do presidente declarou, com outras palavras, foi algo assim: "Como pode o Sergio Moro convidar uma sabotadora para integrar um conselho de sua pasta?"
Moro talvez não tenha percebido. Mas sua transição do papel de superministro para o de minimistro está fazendo dele uma espécie de anti-Moro. Dias atrás, enviou ao Congresso o seu pacote anticrime. Ao contrário do que trombeteara, a criminalização do caixa dois não constou do embrulho principal. Escorregou para um projeto separado, mais fácil de ser esquecido.
O mini-Moro atribuiu o fatiamento a "reclamações razoáveis" dos congressistas. Alegou-se que o caixa dois é crime menos grave do que a corrupção. E o ministro, desdizendo o juiz que um dia foi, concordou. Ou, por outra, rendeu-se. Consumada a capitulação, o pacote de Moro foi escondido no quartinho dedicado às tralhas. Considerou-se que, por ora, as prioridades do sub-ministro não são senão estorvos no caminho da reforma da Previdência.
Retorne-se, por oportuno, à frase do primeiro parágrafo: "Eu não assumiria um papel de ministro da Justiça com o risco de comprometer a minha biografia, o meu histórico." No momento, o ex-juiz cumpre pena de prisão dentro da bolha que idolatra Bolsonaro nas redes sociais. Sua biografia virou um asterisco espremido entre as desculpas de um filho pilhado pelo Coaf, o senador Flávio Bolsonaro, e a cara de desentendido do pai. Seu histórico ornamenta negociações com prontuários que merecem interrogatório, não diálogo.
Mantido o ritmo atual de encolhimento, o ex-juiz da Lava Jato logo estará dormindo numa caixa de fósforos, atormentado pela doença que transforma os Bolsonaro em gigantes. O barulhinho que se ouve ao fundo é o ruído da plateia perguntando aos seus botões: "Afinal, a que temperatura ferve a biografia de Sergio Moro?"
Sobre o autor
Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.
Sobre o blog
A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.